Veja 02/12/98
PrivatizaçãoBode expiatório berra
Com a saída de Ricardo Sérgio, Jair Bilachi, ohomem da Previ, é o novo olho do furacão
Felipe Patury
ardo Sérgio:foi embora.Tempestade à vistaFoto: Cleo Velleda/Folha ImagemEle resistiu, esperneou, insistiu — mas acabou caindo. Na quinta-feira passada, o economista Ricardo Sérgio de Oliveira, 52 anos, tornou-se a quinta vítima do grampo no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES, e encerrou seu reinado no Banco do Brasil como diretor da área externa, responsável pelos negócios internacionais do banco e pelos grandes clientes no Brasil. Também deixou de ser o maestro de coxia da Previ, o poderoso fundo de pensão do Banco do Brasil, dono de um patrimônio colossal, de 22 bilhões de reais. Nas conversas grampeadas, Ricardo Sérgio comparece com o trecho mais sugestivo de irregularidade. Num telefonema com o então ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, o diretor do banco afirma que acabara de conceder uma fiança altíssima, de 874 milhões de reais, e reconhece: "Estamos no limite da nossa irresponsabilidade". Mesmo assim, o diretor só deixou o cargo depois de receber recados de que o Palácio do Planalto gostaria muito de ouvir seu pedido de demissão. Na quarta-feira à noite, Ricardo Sérgio chegou a telefonar para seu amigo no Planalto, o ministro Clovis Carvalho, da Casa Civil. Na conversa, explicou por que não pediria demissão, dizendo que havia cumprido seu dever e nada fizera de errado. Clovis Carvalho, com sutileza, explicou-lhe que mesmo assim havia um problema político, um desgaste que precisava ser contornado. No dia seguinte, caiu a ficha. Ao meio-dia, Ricardo Sérgio ligou de São Paulo para o presidente do banco, Paulo César Ximenes, e avisou que estava indo embora.
"Não vou falar mal deum amigo, mas foi umagrande decepção."Do ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, sobre Ricardo Sérgio
Esquivo, avesso a fotografias e a qualquer tipo de exposição, Ricardo Sérgio de Oliveira já vinha saindo do anonimato em função do desembaraço com que atuava no Banco do Brasil e na Previ. Com sua influência na Previ, articulou a formação de consórcios que participaram dos leilões de privatização da Vale do Rio Doce e da Telebrás. No caso da Telebrás, chegou a ajudar o consórcio vencedor, o Telemar, chamado de "telegangue" pelo ex-ministro Mendonça de Barros, a pagar a entrada da compra da Tele Norte Leste, que reúne dezesseis teles. Acionou a Previ para que adquirisse 120 milhões de reais em ações de duas empresas do Telemar — o grupo La Fonte, do empresário Carlos Jereissati, e o grupo Inepar, de Atilano Sobrinho. Ricardo Sérgio também já levou a Previ a comprar prédios de um sócio e amigo seu, José Stefanes Gringo. O ex-diretor do BB e José Gringo são sócios numa corretora paulista, a RMC. Até já veio a público uma carta em que Ricardo Sérgio mostrava seu empenho em que o banco fechasse um negócio com uma empresa de TV por assinatura, a KTV, e censurava, em tom ríspido, os técnicos do banco que, em comunicado à diretoria, diziam que a transação era uma fria. Ele queria porque queria fazer o negócio.Foto: Roberto Jaime Foto: Orlando Brito Ximenes e Pedro Paulo: carta-bombae empréstimos favorecidos
Vontade e missão — Essas práticas hetedoroxas antecederam a história do grampo. E Ricardo Sérgio ficou na corda bamba. Seu amigo de três décadas, o ex-ministro Mendonça de Barros, era um que esperava ansioso pela demissão do diretor. "Não vou falar mal de um amigo, mas foi uma grande decepção", diz o ex-ministro. A decepção veio quatro dias depois da venda da Tele Norte Leste, quando o BNDES, pego de surpresa pela vitória acidental do Telemar, interveio no consórcio e ficou com 25% das ações. Ricardo Sérgio não queria saber do BNDES na jogada. Chegou até a reclamar da intervenção com o ex-presidente do banco, André Lara Resende. Nessa conversa de desavenças com o BNDES, Ricardo Sérgio levou consigo o presidente do Banco do Brasil, Paulo César Ximenes. É uma indicação de como Ricardo Sérgio e Ximenes tocavam de ouvido na direção do Banco do Brasil — ainda que Ricardo Sérgio fosse o único diretor do BB não indicado por Ximenes. Seu nome apareceu por sugestão do ministro José Serra, da Saúde, em cuja campanha eleitoral Ricardo Sérgio atuou como arrecadador, trabalhando com a mesma discrição com que marcou sua passagem pelo governo.
No plano formal, Ricardo Sérgio não tinha relação alguma com a Previ, mas logo que chegou ao Banco do Brasil recebeu orientação do governo para controlar os negócios do fundo e colocou um braço direito lá dentro. É João Bosco Madeiro, diretor da área mais sensível da Previ, a de investimentos. O fundo do BB é poderosíssimo, tem negócios em 159 empresas e, com seu caixa monumental, é hoje a maior fonte de financiamento do país, centro da romaria de todo empresário que ande atrás de investimento. A disputa para ocupar o espaço de Ricardo Sérgio começou antes mesmo de sua demissão ser formalizada. Na terça-feira passada, numa reunião da Previ no Rio de Janeiro, houve o primeiro quebra-pau. João Bosco Madeiro propôs que a Previ investisse 20 milhões de reais na construção de um shopping center em São Luís, no Maranhão. O presidente da Previ, o economista Jair Antônio Bilachi, bombardeou a proposta no ato.
O shopping em São Luís é um empreendimento de José Braffman, um homem muito ligado a Ricardo Sérgio e, também, sócio de Miguel Ethel, vice-presidente do grupo La Fonte — o mesmo do empresário Carlos Jereissati, do consórcio Telemar. As coisas, então, encaixam-se assim: João Bosco Madeiro, o braço direito de Ricardo Sérgio, leva para a Previ uma proposta que interessa aos amigos de Ricardo Sérgio, e Jair Bilachi se opõe. Até a semana passada, o homem escalado pelo governo para vigiar a Previ de perto era Ricardo Sérgio, o que fazia de Jair Bilachi uma versão masculina da rainha da Inglaterra, com a diferença que, ao contrário da rainha, Bilachi sempre quis mandar. Pois, agora, Bilachi luta para manter-se no trono, só que com o poder que nunca teve. O xadrez pode parecer estapafúrdio, mas é assim mesmo que se movem as peças no tabuleiro da Previ. No plano formal, as decisões são tomadas em colegiado por seis diretores — três indicados pelo governo e três eleitos pelos funcionários. Na prática, todos bicam, ou tentam bicar, na montanha de dinheiro do fundo. Mas o governo, na verdade, é que tem sido o grande regente por trás do espetáculo.
Irregularidades — Na semana passada, soube-se que Jair Bilachi, candidato a mandar de fato na Previ, é um homem muito enrolado. Ele é presidente da Previ desde novembro de 1996 e chegou lá por indicação de Manoel Pinto. Na época, Manoel Pinto era secretário executivo do BB, mas acabou mais tarde sendo rebaixado para a diretoria da Brasil Seguridade, uma das empresas do banco, porque onde Manoel Pinto andava sentia-se um cheiro de enxofre no ar. Bilachi foi gerente de agência do BB em Brasília, depois se tornou o superintendente do banco no Distrito Federal. Saiu dessa função para assumir a presidência da Previ, no entanto deixou para trás um colar de irregularidades. Desde 1995, Jair Bilachi está sendo investigado pelo Banco Central. Nessa época, informada de que poderia haver irregularidades no banco em Brasília, a fiscalização do Banco Central escolheu, aleatoriamente, 118 operações feitas em cinco agências do BB em Brasília. Os técnicos tomaram um susto: 90% das operações examinadas tinham problemas. E problemas cabeludos.
Numa dessas operações, Bilachi atuou como goleiro e atacante. Em 1994, como gerente de uma agência do BB em Brasília, concedeu três empréstimos no valor total de 99 milhões de reais à Encol, a construtora que faliu no ano passado, deixando 42000 famílias com seus apartamentos pagos e não entregues. A Encol já estava mal das pernas, mas mesmo assim Bilachi não apenas deu os empréstimos como aceitou que o avalista fosse o próprio dono da Encol, Pedro Paulo de Souza. Além disso, jogando como atacante, aceitou que a Encol apresentasse como garantia de pagamento debêntures da própria empresa — o que fere uma norma do Banco Central. Essa norma, aliás, proíbe que uma empresa apresente como garantia debêntures até de uma empresa coligada sua — imagine só se forem debêntures dela mesma. No ano seguinte, em 1995, já como superintendente do BB, Jair Bilachi assumiu a posição de goleiro. Passou a rolar os empréstimos da Encol sem que a empresa tivesse desembolsado um único tostão. Naturalmente, até hoje o Banco do Brasil não viu a cor desse dinheiro.
Como resultado das investigações, o Banco Central preparou um relatório de quarenta páginas narrando as 118 operações. Elas somam 140 milhões de reais e envolvem 72 empresas e pessoas físicas. Acionada, a auditoria do Banco do Brasil entrou em ação no final de 1997, dois anos depois de iniciada a investigação do Banco Central. Na auditoria, descobriu-se que Bilachi, como gerente e depois como superintendente, cometeu 31 irregularidades. Coisas como empréstimos sem garantia, rolagem indevida de débitos, fornecimento de créditos num valor acima de sua alçada e sem nenhum estudo técnico. Além disso, diz a auditoria, Bilachi deu empréstimos a empresas sabidamente quebradas, chegou a realizar operações contrariando recomendações técnicas, o que fere normas do próprio BB, e aceitou garantias sólidas como vento. Somando as operações auditadas pelo Banco do Brasil, Bilachi emprestou mais de 110 milhões de reais, sendo que a estrela desses empréstimos era a própria Encol. Se todas as suspeitas se confirmarem, Bilachi poderá ser punido. A pena para essas irregularidades vai desde simples advertência até a demissão do Banco do Brasil, do qual é funcionário de carreira e perderia, portanto, seu trono na Previ.
Carta-bomba — O estágio das investigações sugere que o presidente da Previ terá mesmo problemas em breve. Pelas normas do Banco do Brasil, quando se encontra uma irregularidade cometida por um funcionário, ele primeiro recebe uma carta com pedido de explicações. Se as respostas não forem convincentes, o banco manda uma segunda carta, soliticando novas explicações. Bilachi já está no terceiro estágio — há duas semanas encerrou-se o prazo para que ele envie suas explicações pela terceira vez. "Quando o Banco do Brasil chega a esse estágio é porque as desconfianças já são quase certezas", diz um alto funcionário do banco. Uma das perguntas insistentes que a auditoria tem feito para Bilachi é a seguinte: por que ele respondeu sozinho a uma carta do Banco Central, que lhe indagava sobre irregularidades em sua gestão, quando o próprio Banco Central pedia que sua resposta fosse também assinada ao menos por dois diretores do Banco do Brasil? Na prática, a auditoria suspeita que Bilachi agiu como o menino que, ao tirar notas baixas na escola, esconde o boletim do pai. Diante de tantos problemas, surge uma pergunta central: se estava com a vida tão complicada e soterrado por essa montanha de suspeitas, por que Bilachi foi premiado com o comando da Previ?
É aí que está o olho do furacão. Nas explicações que mandou para o Banco do Brasil em junho passado, Jair Bilachi insinua que fez tudo com o conhecimento da diretoria do Banco do Brasil. Diz, a certa altura, que os empréstimos à Encol, notoriamente um negócio de quinta categoria, só foram dados porque "as orientações emanadas dos escalões superiores da Casa eram no sentido de emprestar". Até as moedas do cofre do Banco do Brasil sabem que quem tinha ligações estreitas com a Encol era o diretor de crédito geral, Edson Ferreira, que chegou a comandar, ele próprio, as negociações da construtora com seus credores. Bilachi não fala das insinuações de envolvimento da diretoria do banco, mas elas estão todas impressas em sua carta, de 31 páginas, enviada para a auditoria do Banco do Brasil. E mais: avisa que assinou sozinho aquela carta ao Banco Central por sugestão — olha só — da própria auditoria do BB. E por quê? Para que os diretores do banco não aparecessem na história. É uma acusação grave. Na terça-feira passada, Bilachi escreveu uma carta-bomba ao presidente do banco, Paulo César Ximenes. Nela, pede a ele que encerre as investigações sobre seu passado recente no banco e, veladamente, diz que se está sentindo injustiçado. Até sexta-feira passada, Bilachi não havia tomado coragem para remeter a carta. Na hora em que a enviar estará dado o sinal. É mais ou menos assim: bom cabrito não berra, mas bode expiatório berra — e alto. Tormentas à vista.
Com reportagem de Consuelo Dieguez, do Rio de Janeiro
Copyright © 1998, Abril S.A.
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