O que a delegação da ONU, que virá ao Brasil em setembro, irá encontrar em todo o território nacional
Solange Azevedo“Avisei para um funcionário do hospital que eu estava surtando e que ia me cortar.
Ele me falou para esperar o turno dele acabar e passar a lâmina no pescoço”
J., ex-interno do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Taubaté (SP)
Duas décadas e meia depois do fim da ditadura militar (1964-1985), o Brasil não está livre da tortura – uma das pragas que marcaram o regime. Sevícias como pressão psicológica, choques, espancamentos, violência sexual e assassinatos ainda fazem parte do cotidiano de delegacias, batalhões da PM, presídios e unidades para adolescentes infratores. Nos anos de chumbo, as vítimas preferenciais eram estudantes engajados, intelectuais e líderes políticos. Os militares se viram obrigados a arrefecer quando as ações praticadas nos porões da repressão repercutiram no Exterior. Atualmente, os torturadores mostram sua face mais cruel aos pobres e encarcerados. Pessoas sem voz e com pouquíssimo acesso à Justiça. Mas tudo indica que a violência contra esses cidadãos, em breve, também repercutirá além das fronteiras nacionais e voltará a abalar a imagem do País. Uma delegação do Subcomitê da ONU para a Prevenção da Tortura virá ao Brasil, provavelmente em setembro, e fará visitas-surpresa a locais de privação de liberdade. O objetivo do grupo é traçar um panorama das agressões e pressionar para que o Estado tome providências.
Não existem números confiáveis sobre tortura no País. Como se trata de um crime praticado, em geral, por policiais ou carcereiros, as vítimas têm medo de denunciar. Casos como o dos seis PMs presos em flagrante na semana passada por terem ameaçado e ateado fogo num morador de rua em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, são raríssimos. O que chega aos tribunais é uma pequena parcela do que ocorre diariamente. “A tortura no País é cultural, generalizada e sistemática. Começou no período da escravidão e se mantém até hoje”, afirma Margarida Pressburger, integrante do Subcomitê da ONU. “A vocação brasileira para a tortura se solidificou porque os torturadores não são punidos.” Para castigar, arrancar confissões ou obter informações sobre terceiros, agentes do Estado adotam a ferramenta criminosa da tortura como método de trabalho.
“Os dados nacionais mais recentes são de 2003. Depois disso, o programa Disque-Denúncia federal foi desativado. Em dois anos, foram recebidas 20 mil denúncias”, diz Luciano Mariz Maia, procurador da República e membro do Comitê Nacional Contra a Tortura. Maia afirma que, de cada três casos de tortura, um é praticado por policiais civis, um por PMs e o outro por categorias como a dos carcereiros e dos guardas civis. “Em um terço dos registros, não há crime aparente, como quando alguém é pego só porque está olhando o quintal de uma casa”, relata o procurador.
Não existem números confiáveis sobre tortura no País. Como se trata de um crime praticado, em geral, por policiais ou carcereiros, as vítimas têm medo de denunciar. Casos como o dos seis PMs presos em flagrante na semana passada por terem ameaçado e ateado fogo num morador de rua em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, são raríssimos. O que chega aos tribunais é uma pequena parcela do que ocorre diariamente. “A tortura no País é cultural, generalizada e sistemática. Começou no período da escravidão e se mantém até hoje”, afirma Margarida Pressburger, integrante do Subcomitê da ONU. “A vocação brasileira para a tortura se solidificou porque os torturadores não são punidos.” Para castigar, arrancar confissões ou obter informações sobre terceiros, agentes do Estado adotam a ferramenta criminosa da tortura como método de trabalho.
“Os dados nacionais mais recentes são de 2003. Depois disso, o programa Disque-Denúncia federal foi desativado. Em dois anos, foram recebidas 20 mil denúncias”, diz Luciano Mariz Maia, procurador da República e membro do Comitê Nacional Contra a Tortura. Maia afirma que, de cada três casos de tortura, um é praticado por policiais civis, um por PMs e o outro por categorias como a dos carcereiros e dos guardas civis. “Em um terço dos registros, não há crime aparente, como quando alguém é pego só porque está olhando o quintal de uma casa”, relata o procurador.
“Torturaram e mataram meu filho dentro da delegacia.
Quero que os responsáveis sejam punidos”
Indaiá Moreira, 43 anos, mãe de Vinicius
Os policiais exigiram que ele confessasse um crime que não havia cometido. No ano passado, R. foi inocentado pela Justiça. Apesar da absolvição, ele não consegue levar uma vida normal. Faz acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Já tentou suicídio. Raramente sai de casa e entra em pânico quando vê aglomerações. R. perdeu tudo: o emprego, a mulher, os amigos, a saúde. Ele denunciou o caso à Corregedoria. Mas o órgão arquivou duas apurações preliminares alegando “ausência de elementos e fragilidade da declaração prestada”. Entre 2007 e maio de 2011, segundo a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, 77 policiais civis foram demitidos por violência – o que inclui, entre outros delitos, lesão corporal e tortura.
“Quem investiga é a própria polícia ou funcionários dos presídios. Muitas vezes, é o torturador quem leva a vítima para o exame de corpo de delito, e os médicos que fazem os laudos se omitem”, diz José de Jesus Filho, assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional. “É um problema o Judiciário imaginar que torturadores são psicopatas”, afirma o procurador Maia. “A tortura é racional e quem a pratica acha que está fazendo algo positivo para a sociedade, que está desvendando delitos. No meio em que esses indivíduos estão inseridos, é uma escolha intimamente defensável.”
A enfermeira S., 42 anos, foi presa em março de 2010. Ela relata que, logo depois de pegar carona com um amigo da filha e um conhecido dele, uma viatura os abordou. Ao revistar o carro, um dos PMs teria encontrado uma arma debaixo do banco. Começava ali o tormento. S. conta que os três foram levados para o 37o Batalhão da Polícia Militar, na zona sul da capital paulista. “Estava algemada e fui empurrada várias vezes contra a parede, fiquei com um galo na testa. Me jogavam no chão, davam socos na minha nuca e chutes na minha bunda, me puxavam pelos cabelos”, diz. “Ficavam me perguntando quem era o dono de uma moto amarela e falando que, se eu indicasse alguma boca de fumo, eles me soltariam. Mas eu não vi nenhuma moto.”
“Ficavam me perguntando quem era o dono de
uma moto amarela e falando que, se eu indicasse
alguma boca de fumo, eles me soltariam. Mas eu não vi nenhuma moto”
S., 42 anos, enfermeira
“Quando agressões são um método investigativo e agentes públicos se sentem no direito de mitigar a vida, a tortura se torna apenas um detalhe”, afirma o advogado Rildo Marques, do Centro Santo Dias de Direitos Humanos. Em junho, J. encontrou o neto com hematomas nos braços e nas pernas. Ele é um dos 16 internos que apanharam na Unidade 28 da Fundação Casa (antiga Febem paulista). “Tinha menino com o pé quebrado, com pontos na cabeça, com o dedo decepado”, diz J.
“Eram cinco policiais me batendo e me xingando.
Davam socos e tapas. Tentaram me chutar no rosto,
mas me protegi com as mãos e fiquei com os dedos machucados”
T., 42 anos, trabalha num ferro-velho do Rio
A tortura física pode deixar marcas visíveis. A psicológica, não. J., 26 anos, passou 2010 no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Taubaté. Dependente de crack e inserido num quadro que a ciência chama de “borderline” – um distúrbio em que o indivíduo apresenta sintomas inerentes a qualquer ser humano, mas com uma intensidade que o afasta do eixo da normalidade – ele foi internado após roubar um celular e ser considerado pela Justiça paulista incapaz de responder por seus atos.
Na companhia da mãe, J. contou que ficava trancafiado na cela 20 horas por dia e que não recebeu tratamento médico. “Minha mãe pediu para o pessoal do hospital não me dar prestobarba, porque eu me cortava. Mesmo assim, eles davam. Uma vez, avisei a um funcionário que eu estava surtando e que ia me cortar. Ele me falou para esperar o turno dele acabar e passar a lâmina no pescoço”, diz o rapaz. “Fizeram alguma coisa na minha cabeça. Sai pior do que entrei. A psicóloga falava que minha mãe estava contra mim.” Contatada por ISTOÉ, a SAP não se manifestou.
“Tinha menino com o pé quebrado, com
pontos na cabeça, com o dedo decepado”
J., 62 anos, avó de um interno da Unidade 28 da Fundação Casa
Assim como outras vítimas entrevistadas para esta reportagem, T. preferiu manter o anonimato porque teme pela própria segurança e de familiares. Indaiá Moreira, 43 anos, não. Ela percorre os tribunais fluminenses em busca de Justiça desde 2009. O filho dela, Vinicius, morreu 20 dias depois de ser preso. “Torturaram e mataram meu filho dentro da delegacia”, conta Indaiá. Vinicius, 20 anos, tinha um ferimento subcutâneo na cabeça, o que lhe causou um coágulo, e marcas de queimaduras de cigarro pelo corpo. Indaiá recebeu uma indenização de R$ 50 mil porque o Estado reconheceu que falhou na guarda de Vinicius, pego numa tentativa de assalto. “Não me interessa o dinheiro, quero que os responsáveis pela morte dele sejam punidos”, sentencia Indaiá. “Sei que vai ser difícil, mas vou lutar até o fim.”
Colaborou Francisco Alves Filho
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