sábado, 22 de outubro de 2011

A agenda da OTAN para a Líbia: Sempre Gaddafi, do começo ao fim




Vijay Prashad


21/10/2011, Vijay Prashad, Counterpunch, ed. fim de semana, 21-23/10/2011
Traduzido e comentado pelo pessoal da Vila Vudu


Entreouvido na Vila Vudu:
Artigo interessante, sim, pra ser lido com calma, sem demasiada adesão identitária às “posições” já enunciadas de cada um. 
O argumento tende um pouco para o lado liberal fanado de querer “democracia” -- tendência que sempre irrita, se se sabe que a democracia liberal não é e jamais será democrática. 
Mas o autor é sensível às entrelinhas, aos interstícios aos entretempos. E isso é estimulante. "Gostei, traduzi" (de mesagem do tradutor). Aí vai.

Numa estrada poeirenta nos arredores de Sirte, um comboio tenta deixar o campo de batalha. Um avião da OTAN atira e atinge os carros. Os feridos tentam salvar-se. Caminhões carregados de combatentes armados rumam para a cena. Encontram os feridos e, entre eles, está o trunfo mais procurado: Muammar Gaddafi ensanguentado tenta escapar e é capturado. E então, foi jogado entre os combatentes. É fácil imaginar a excitação. Imagens de um telefone celular acompanham os momentos seguintes. Gaddafi bastante ferido é jogado de um lado para outro e metido num carro e, então, as imagens saem de foco. As imagens seguintes já mostram o cadáver de Gaddafi. Tem um buraco de bala no lado da cabeça.

Essas imagens quase imediatamente chegaram ao Youtube. Estavam nas televisões e nos jornais. Seria impossível não as ter visto.

3ª Convenção de Genebra (art. 13): “Prisioneiros de guerra têm de ser protegidos em todas as circunstâncias, particularmente contra atos de violência ou intimidação e contra insultos e curiosidade públicos”. 

4ª Convenção de Genebra (art. 27): “Prisioneiros sob guarda têm direito, em todas as circunstâncias, a respeito à pessoa, à honra, aos direitos de suas famílias, a respeito a suas convicções religiosas, seus hábitos e costumes. Em todos os casos devem ser tratados com humanidade e devem ser protegidos especialmente contra todos os atos de violência ou ameaças ou insultos ou a curiosidade pública”. 

Um dos elementos ideológicos importantes durante os primeiros dias da guerra na Líbia foi obter o mandado de prisão contra Gaddafi e seu grupo, expedido pelo seletivamente zeloso procurador chefe da Corte Internacional de Justiça, Luis Moreno Ocampo. Houve várias matérias de imprensa denunciando violência excessiva nos termos usados por Moreno Ocampo e Ban Ki-Moon, que falaram em genocídio. Ninguém exigiu qualquer exame pericial de qualquer “prova”. [De fato, houve avaliação pericial, mas feita pelas organizações Anistia Internacional eHuman Rights Watch, que desqualificou completamente as acusações de Ocampo [Coordenador de Área/Junta de Comando do Estado-Maior (ing. Area Coordinator/Joint Chiefs of Staff)] (AC/JSC).]

Cerimonialmente, a OTAN declarou que ajudaria o Tribunal Criminal Internacional a executar o mandato de prisão (os EUA, alma mater da OTAN, não é membro do Tribunal Criminal Internacional). Essa declaração logo encontrou eco no Conselho Nacional de Transição, instrumento político da OTAN em Benghazi.

A “intervenção humanitária” foi justificada, em nome de alegadas ou potenciais violações das Convenções de Genebra. O grand finale da intervenção viola diretamente aquelas mesmas Convenções.

Seria muito inconveniente pôr Gaddafi no banco dos réus em julgamento público. Gaddafi há muito tempo abandonara sua herança revolucionária (1969-1988) e pelo menos desde 2003 cedera à Guerra ao Terror comandada pelos EUA (mas, de fato, essa já era sua posição desde o final dos anos 1990s). As prisões de Gaddafi foram importante centro de tortura no arquipélago de buracos negros usados pela CIA, pela inteligência europeia e pelo estado de segurança egípcio. Que histórias Gaddafi contaria, se lhe fosse dada a palavra em tribunal legal? Que histórias Saddam Hussein teria a contar, se lhe fosse dada a palavra em tribunal legal? Saddam Hussein, pelo menos, teve direito a julgamento, embora em tribunal mais de exceção, que de justiça.

Nem esse simulacro de justiça, para Gaddafi. Como disse Naeem Mohaiemen, “Mortos não falam. Não precisam ser julgados. Não dizem quem foram seus cúmplices nem que os ajudou a manter-se no poder. Todos os segredos morrem com eles”.

Gaddafi está morto. É hora de lembrar que lidamos com pelo menos dois Gaddafis. O primeiro Gaddafi derrubou monarquia omissa e corrupta em 1969, e pôs-se a trabalhar para transformar a Líbia, seguindo uma via de empenhado desenvolvimento nacional. Houve algumas idiossincrasias, como as ideias de Gaddafi sobre democracia, que nunca produziram instituições de alguma utilidade. Gaddafi tinha a excepcional habilidade de centralizar o poder, em nome da descentralização. Seja como for, o Gaddafi da libertação nacional com certeza converteu grandes parcelas da renda nacional em benefícios que geraram vida melhor para o povo líbio. Graças às duas décadas dessas políticas, o povo líbio entrou no século 21 com altos índices em indicadores de desenvolvimento humano. O petróleo ajudou, mas outras nações são ricas em petróleo (como a Nigéria), e o povo padece grave miséria, sem acesso a bens ou desenvolvimentos sociais.

Em 1988, o primeiro Gaddafi metamorfoseou-se no segundo Gaddafi, que pôs de lado a luta antiimperialista e passou a colaborar com o imperialismo, e que descartou o desenvolvimento nacional e abraçou a via da privatização neoliberal (conto essa história em Arab Spring, Libyan Winter, no prelo, a ser publicado pela editora AK Press, na primavera de 2012). Esse segundo Gaddafi descartou o trabalho para construir bem-estar para a população; assim, descartou o aspecto de seu governo que o povo admirava. Dos anos 1990s em diante, o regime de Gaddafi só ofereceu às massas a ilusão de riqueza social e a ilusão de democracia. As massas queriam mais, e essa foi a causa do longo processo de agitação civil que se iniciou nos primeiros anos da década dos 1990s (simultaneamente, com a Guerra Civil na Argélia), teve um pico nos anos 1995-96 e depois, outra vez, em 2006. Foi tempo suficiente para que os vários elementos rebeldes se encontrassem.

A nova liderança de Trípoli foi incubada dentro do regime de Gaddafi. Seu filho, Saif al-Islam era visto como o principal neoliberal reformista, e cercou-se de gente cujo projeto nacional era ver a Líbia convertida numa Dubai, maior. Puseram-se a trabalhar em volta de 2006, mas logo se decepcionaram com a taxa de progresso; e muitos (entre os quais Mahmud Jibril, atual primeiro-ministro do Conselho Nacional de Transição) várias vezes ameaçaram renunciar. Quando uma insurgência eclodiu, em Benghazi, essa claque correu a unir-se aos “rebeldes” e, em março, assumiram a liderança da insurgência, que permanece até hoje nas mesmas mãos.

O que, afinal, há quem celebre nas ruas de Benghazi, Trípoli e outras cidades? Ninguém duvide: há júbilo por o Gaddafi de 1988-2011 já não estar no poder. Interessa à OTAN e à claque de Jibril garantir que esse auto-da-fé da libertação nacional antiimperialista de 1969-1988 esteja liquidado, e que a era neoliberal que a Líbia conheceu seja esquecida... para que possa renascer, nova, como se, antes, jamais tivesse sido tentada. 

O truque será o seguinte: navegar entre as vastas porções da população que quer participar da vida política na nova sociedade (movimento que Gaddafi bloqueou e que Jibril tentará canalizar a seu favor) e uma pequena porção da população, à qual interessa prosseguir pela agenda neoliberal (que Gaddafi tentou facilitar, mas não conseguiu, por causa das objeções de seus “homens das tendas”). A nova Líbia nascerá dos interstícios dessas duas interpretações.

O modo como Gaddafi morreu é uma sinédoque (a parte, pelo todo) de toda a guerra. As bombas da OTAN detiveram o comboio e, sem elas, é provável que Gaddafi chegasse ao seu próximo abrigo. A revolta na Líbia talvez tivesse sucesso sem a OTAN. Mas, com a OTAN, algumas opções políticas tiveram de ser abandonadas. Agora, os estados-membros da OTAN estão alinhados para reclamar a parte que lhes cabe do butim. Mas são polidos demais, à maneira dos liberais europeus, para reivindicar publicamente essa recompensa, em termos de toma-lá-dá-cá. Por isso dizem o que dizem: que é guerra líbia e os líbios decidirão o que fazer. Esse é o espaço no qual as novas estruturas de poder na Líbia que ainda valorizem a soberania devem afirmar-se. Em pouco tempo, a brecha que hoje há para que se manifestem estará fechada, depois de os acordos comerciais estarem assinados e já confiscados os recursos naturais e a autonomia da Líbia, todos já então cooptados na agenda dos estados da OTAN.

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