terça-feira, 11 de outubro de 2011

Cynara Menezes: Se quiser fazer bom vatapá, é melhor aprender a mexer



As garotas Walita órfãs

por Cynara Menezes, em CartaCapital

Parodiando Bertolt Brecht: quem fez o bolo Sousa Leão? Nos livros constam os nomes das rainhas (do lar). Bentas, Palmiras, Ofélias, Anas Marias e Ninas levariam a fama de criadoras dos acepipes que trazem ainda hoje o sobrenome das famílias poderosas que os serviam às visitas e cujas receitas eram guardadas a sete chaves. Na cozinha, ao lado da dona-de-casa de forno e fogão, Nastácias, Zefas, Severinas, Franciscas e Aparecidas virariam, quando muito, meras notas de rodapé na história da gastronomia no Brasil.

Falo isso e me vem à memória um filme das madrugadas da infância, “Imitação da Vida”, um clássico em preto e branco de 1934, que assistimos algumas vezes em família na sessão Coruja. Nele, uma dona-de-casa (Claudette Colbert) fica rica ao industrializar a receita de panquecas que lhe foi trazida por uma empregada negra (Louise Beavers). A patroa, generosa, oferece sociedade à criada e esta recusa por conhecer seu “lugar”: prefere continuar sendo empregada. Mas as panquecas são batizadas com seu nome e não no da patroa, coisa rara –”Tia Delilah”. Vem-me à lembrança também a canção de Dorival Caymmi, “Vatapá”: “com qualquer dez mil-réis e uma negra, ô, se faz um vatapá”.

Décadas depois do que ocorreu na Europa e nos Estados Unidos, finalmente a era das empregadas domésticas está chegando ao fim no Brasil. As moças pobres querem estudar para seguir outra profissão, já não têm como horizonte apenas dedicarem suas vidas às vidas de outras gentes. Não querem ser mais “praticamente da família”, como se dizia, querem ter suas próprias famílias. Tampouco almejam que suas filhas herdem o serviço, trabalhando para os filhos dos patrões, como acontecia antigamente. “A família dela está na nossa família há anos”: quantas vezes ouvi isso? Acabou.

Mas vejam o que se dá. Em vez de dizermos “adeus, queridas, obrigada por tudo”, e tentarmos descobrir outra maneira de cuidar da casa e criar nossos filhos, o que se vê são narizes torcidos. Fala-se das moças que não querem mais dormir no emprego porque estudam à noite como “esnobes sem causa”. Ironiza-se a empregada que “se acha melhor que a patroa”, a que sente saudade de sua terra e quer ir embora, a “estudante-de-direito”. Acusa-se toda uma categoria de estar fazendo guerra de classes dentro de casa, roubando as patroas. Por último: como antes se importava do Nordeste, agora importam-se criadas do Paraguai.

Em termos familiares, construímos nossas vidas com a ilusão de que teríamos empregadas domésticas para sempre. No Brasil, ao contrário de outros países, as crianças passam um tempo mínimo na escola. Em casa, ensinamos nossos filhos –e eu mesma me penitencio por isso– a não fazerem qualquer tarefa doméstica. Há quem se gabe de, na cozinha, ser incapaz de fritar um ovo. Mas, sem as empregadas, já não somos como a garota do anúncio antigo da batedeira Walita, toda sorridente porque, depois, vai ter quem limpe a bagunça. Órfãs, não sabemos o que fazer daqui para a frente.

Para começo de conversa, não há maneira mais digna de se lidar com esta realidade do que aceitar que nossas empregadas estão subindo na vida. Sem chororô, com orgulho: é mais uma etapa que superamos do subdesenvolvimento. O que temos de fazer é modificar a maneira como vivemos até agora –exigindo escolas integrais e semi-integrais para nossos filhos, por exemplo. Também é preciso, mais do que nunca, que homens e mulheres, adultos e crianças, ajudem nas tarefas do lar, lembrando que as divisões por gênero foram abolidas há muito. Não nos resta outra saída a não ser simplificar nosso modo de morar, de viver e de comer. Chegou a hora de aprender a mexer o vatapá.

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