O Brasil deu um vexame na ONU. Jamil Chade, correspondente de O Estado de S. Paulo em Genebra, relata que a delegação de nosso país à 51ª Sessão do Comitê da ONU para a Eliminação da Discriminação Contra Mulheres foi colocada contra a parede. A representante brasileira não tinha como explicar por que o Brasil nada faz para impedir a morte de 200 mil mulheres por ano por causa de abortos clandestinos.
A explicação sincera que a ministra Eleonora Menicucci poderia ter dado a teria levado à demissão antes mesmo de voltar a Brasília: o Brasil nada faz porque prevalece no país um pensamento conservador e atrasado que não permite sequer a discussão do assunto. Nosso governo e nossos congressistas são reféns desse pensamento. Têm medo de se indispor com igrejas cristãs e perder votos nos parlamentos e nas urnas. Há tanto temor que a própria ministra, que sempre defendeu a despenalização do aborto, é obrigada a se calar porque essa não é a posição do governo.
Segundo o relato, a perita suíça Patrícia Schulz, diante da dramática situação brasileira, perguntou: “O que é que vocês vão fazer com esse problema político enorme que têm?” A outra resposta sincera, mas também inviável, seria: nada, as mulheres vão continuar morrendo porque algumas igrejas preferem assim e o governo aceita isso com medo de perder votos.
Mas a ministra que gostaria, mas não pode defender a saúde das mulheres brasileiras, quis sair pela tangente, dizendo que o problema é do Congresso, e não do governo. Como se o governo não pudesse tomar a iniciativa de provocar o debate sobre o tema no Congresso e na sociedade, não tivesse a prerrogativa de apresentar um projeto aos parlamentares ou não tivesse larga e folgada maioria na Câmara e no Senado. O problema não é só do governo ou do Congresso, é de Estado – logo, não tem sentido fugir da raia.
Como não poderia responder com franqueza aos inúmeros questionamentos que lhe foram feitos, a delegação brasileira limitou-se a dizer que o Ministério da Saúde mantém serviços credenciados para fazer abortos considerados legais. Não disse que os ilegais são feitos, pelas que têm dinheiro, em clínicas clandestinas que muitos sabem onde funcionam, mas fingem que não sabem. Pelas que têm muito dinheiro, no exterior. E, por quem não tem dinheiro, por pessoas geralmente sem qualificação, em lugares improvisados e sem as mínimas condições de higiene. São essas que mais morrem, claro.
Não se trata, como ficou claro na sessão do comitê da ONU, de defender o aborto. Na verdade, poucas pessoas são a favor do aborto, mesmo entre as que defendem sua despenalização. Mas é preciso reconhecer os fatos, como disse outra perita, Magaly Arocha: “As mulheres vão abortar. Essa é a realidade”. Cabe ao Estado, portanto, assegurar que, se mulheres chegam a esse extremo por decisão própria, possam fazer o aborto com as melhores condições de assistência e proteção. O que, hoje, o Estado brasileiro não pode dar porque o aborto, salvo situações especialíssimas, é ilegal.
Nos Estados Unidos, apenas um estado – Dakota do Sul – penaliza o aborto. Na Europa, somente um país (Malta) não permite o aborto. Na Rússia, na China, na Nova Zelândia, na Austrália, na África do Sul, em Cuba, na Turquia, permite-se o aborto, dentro de circunstâncias estabelecidas na legislação de cada país. As leis definem em que condições as mulheres podem abortar (e essas condições são amplas) e até em que semana de gestação. Não consta que os governos desses e de outros países que permitem o aborto tenham grandes problemas com as igrejas por causa disso.
Aos religiosos que consideram que abortar é assassinato, deve-se assegurar o direito de defender essa posição e tentar convencer os fieis de suas igrejas a não recorrerem à interrupção da gravidez (se bem que isso eles não conseguem). Mas esses religiosos não podem impedir que o assunto seja debatido pela sociedade, submetido a votação no Congresso ou mesmo a um referendo, como foi em Portugal, um país hegemonicamente católico, mas que deixou para trás o atraso e o obscurantismo e entendeu que se trata de um problema de saúde pública.
Se hoje morrem 200 ou 200 mil mulheres por ano, conforme diz o comitê da ONU, o governo brasileiro não pode, por conveniência política, fingir que o problema não existe e lavar as mãos. É uma questão de responsabilidade política e Dilma tem de se mirar nos chefes de Estado e de governo de outros países que, mesmo diante de pressões religiosas, aceitaram o risco de defender e decretar a despenalização do aborto. As igrejas lutaram contra o divórcio, mas o Congresso o aprovou. São contra as uniões homoafetivas, mas hoje elas são realidade. Não querem que as pessoas usem camisinhas, mas até seus seguidores usam.
Dilma e o PT, por suas histórias, têm a obrigação de possibilitar o debate e não ter medo da hipocrisia demista e tucana, que em 2010, em desespero, quis se aproveitar do tema para ganhar as eleições presidenciais. Não é ser a favor do aborto, mas do direito que as mulheres têm de decidir o que querem e interromper a gravidez em condições adequadas. E impedir que tantas continuem morrendo em nome do conservadorismo, do atraso, de dogmas e das conveniências políticas.
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