terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Enquanto Supremo Debate Furto de Galinhas, Dantas Continua Impune.

Furto de galinhas que chegou ao STF provoca debate

reportagem sobre o furto de galinhas que chegou ao Supremo Tribunal Federal, publicada na Folha em 1/2 e reproduzida no Blog, foi tema de debates nos dias seguintes neste espaço, com destaque para os seguintes aspectos: a) o fato de a ação penal "mobilizar a máquina custosa" do Judiciário, como reconheceu o ministro Ayres Britto, relator do processo do STF (*); b) a controvérsia sobre o princípio da insignificância e c) o risco de interpretações equivocadas devido ao destaque dado a essa tramitação inusitada.




No dia 30 de setembro de 2002, o caseiro gaúcho “Garnisé” aproveitou a pouca vigilância do patrão e furtou da propriedade, em Porto Alegre, cinco galinhas e dois sacos de ração. Embora tenha devolvido as aves e a ração, nos oito anos seguintes o fato mobilizaria o aparato do moroso Judiciário brasileiro".



A ação penal contra “Garnisé” somente veio a ser trancada em novembro último pelo Supremo.



"O caso, em si, é de uma irrelevância a toda prova, não há dúvida disso. E, por conta dela, não faz sentido chegar ao Supremo", diz o jurista Sérgio Renault, ex-secretário da Reforma do Judiciário, ouvido pelo Blog. Embora ressaltando não conhecer detalhes do processo, ele teme avaliações equivocadas.



"Por trás do caso pode haver a discussão de um direito importante, uma questão constitucional, como o direito de defesa. É importante que ele seja remetido ao STF, porque pode se estabelecer uma jurisprudência, um precedente que possa valer para outros casos análogos", diz Renault.



"Como é um caso isolado, chama a atenção. Fica parecendo que o STF se dedica muito a esse tipo de coisa, o que não é verdade." Segundo o jurista, também não é verdade que a demora dos processos se deva ao fato de o Supremo estar julgando muitos casos irrelevantes.



"Fica parecendo que o Supremo deve ser responsável por decidir questões de valores financeiros muito altos, que envolvem interesses de banqueiros, empreiteiras, pessoas ricas etc. E não é isso", diz Renault.



"Há uma utilização muitas vezes predatória do Poder Judiciário, mas não por essas pessoas [como "Garnisé"] e não é pelo questionamento de casos como esse. Ao contrário, existem processos demais por pessoas que se valem do Judiciário para obter um ganho financeiro. A utilização indevida do Judiciário é feita muito mais por parte das grandes empresas e dos ricos do que propriamente por pessoas individuais, num caso como esse".



O ex-secretário lembra que, "para recorrer nas instâncias superiores do Poder Judiciário, você tem que pagar custas" [despesas previstas com atos judiciais]. "O valor das custas muitas vezes inviabiliza que as pessoas questionem os seus direitos, porque fica tão caro que não vale a pena".



"Acho muito relevante que a Defensoria Pública faça esse papel, porque senão nós vamos entender que o Supremo é o tribunal dos ricos, dos banqueiros. Isso não é verdade. Tem que julgar o banqueiro, mas também tem que julgar o ladrão de galinhas", diz Renault.



Daniel Chiaretti, Defensor Público Federal em São Paulo, observa que, "mesmo com o reconhecimento da importância da Defensoria Pública nesse caso --que só chegou ao STF graças à Defensoria Pública da União-- o Poder Público insiste em não dar a devida atenção à carreira".



A questão do valor envolvido no furto provocou divergências nas várias instâncias. O Superior Tribunal de Justiça entendeu que a conduta de “Garnisé” “não pode ser considerada irrelevante para o direito penal”. Assim também concluiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que viu na rejeição da denúncia o risco de "se incentivar a criminalidade".



Os dois sacos de ração e as cinco galinhas foram avaliados em R$ 286,00. O STJ decidiu que, no caso de furto, “não se pode confundir bem de pequeno valor com o de valor insignificante”.



O TJ-RS também considerou que R$ 286,00 não pode ser tido como valor insignificante, pois, na época do furto, superava o salário mínimo.



O ministro Ayres Britto viu na conduta do caseiro “muito mais a extrema carência material do paciente do que indícios de um estilo de vida em franca aproximação da delituosidade”.



Para decidir que a ação penal deveria ter prosseguimento e que a denúncia não poderia ter sido rejeitada com base no princípio da insignificância, o TJ-RS havia levado em conta que "Garnisé" respondia "a mais um processo, por tentativa de homicídio qualificado, além de outro, também por furto".



"A Justiça erra gravemente ao não adotar como pressuposto da bagatela os bons antecedentes do autor", diz o Promotor de Justiça Artur Forster Giovannini, de Três Pontas (MG). Segundo ele, "preocupa a banalização da bagatela", uma vez que o princípio mal aplicado "deixa desprotegida a sociedade, principal destinatária da atuação da Justiça."



"O princípio da bagatela é um meio eficaz de proceder a realização da verdadeira Justiça, evitando o encarceramento de um furtador de um frasco de shampoo ou de uma fruta, porquanto, nestes casos, é absolutamente indiscutível que o valor da coisa é pífio, irrisório, o que torna totalmente desproporcional qualquer pena a ser aplicada pela Justiça", diz o promotor.



"Não acredito ser viável aplicar a teoria para furtos de pequeno valor em benefício de autor que faz do crime sua profissão e, tampouco, em casos de lesão patrimonial expressiva para a vítima, como, por exemplo, no furto de uma bicicleta de um trabalhador ou na subtração de um botijão de gás de uma família humilde. Inegável, pois, a relevância penal destes atos lesivos".



"Se consideramos apenas o valor da coisa, os carentes, sempre os mais prejudicados pelo Estado em todas as áreas públicas, novamente serão vítimas, mas desta vez da própria Justiça, que, administrada por quem recebe bons salários, se torna insensível ao drama dos mais pobres", diz Giovannini.



O juiz federal Marcello Enes Figueira, do Rio de Janeiro, que atuou por seis anos em varas criminais, acredita que "houve um alargamento da aplicação do princípio da insignificância, por motivo de sobrevivência: como não é possível dar conta de tudo, acaba-se por eliminar o que é, em tese, menos relevante".



"O princípio da insignificância não é uma jabuticaba, é reconhecido em outros países. Apliquei-o inúmeras vezes e acho que tem seu lugar. Contudo, funda-se em que determinados ilícitos são de tal forma inexpressivos que não chegam a lesar o bem jurídico tutelado (no caso, o patrimônio). Assim, por exemplo, o fumante inveterado que subtrai um cigarro não comete crime, porque o patrimônio da vítima não chega a ser afetado pela conduta ilícita. A subtração de cinco galinhas de um pequeno criador, contudo, pode constituir relevante redução patrimonial (em tese, sem conhecer as circunstâncais do fato comentado)".



"Por certo, não deve dar causa a encarceramento. Mas é para essas e outras que existem as medidas despenalizadoras, como a suspensão condicional do processo e as penas restritivas de direito", conclui o magistrado.



A manifestação do Procurador-Geral da República no Recurso Ordinário em Habeas Corpus oferecido pela Defensoria Pública da União [veja a ementa a seguir] foi pelo não conhecimento do recurso e, caso conhecido, pelo desprovimento.



(*) RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS 105.919 (STF)



EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME DE FURTO SIMPLES. CINCO GALINHAS E DOIS SACOS DE RAÇÃO. INEXPRESSIVIDADE ECONÔMICA E SOCIAL DA CONDUTA. RES FURTIVA DEVOLVIDA À VÍTIMA. IRRELEVÂNCIA PENAL DA CONDUTA. RECURSO PROVIDO.



1. O princípio da insignificância penal é vetor interpretativo do tipo incriminador que exclui da abrangência do Direito Penal condutas provocadoras de ínfima lesão ao bem jurídico por ele tutelado.



2. Essa forma de interpretação visa, para além de uma desnecessária carcerização, ao descongestionamento de uma Justiça Penal que se deve ocupar apenas das infrações tão lesivas a bens jurídicos dessa ou daquela pessoa quanto aos interesses societários em geral.



3. A subtração de cinco galinhas e dois sacos de ração, no caso, não agrediu, materialmente, o tipo penal incriminador do furto simples. Pelo que não é de se mobilizar a máquina custosa, delicada e ao mesmo tempo complexa como é o aparato de poder em que o Judiciário consiste para, afinal, não ter o que substancialmente proteger ou tutelar. Até porque os autos dão conta da total devolução da res furtiva (coisa furtada) à vítima.



4. A inexpressividade econômica e social dos objetos que o acusado subtraiu salta aos olhos. A revelar muito mais a extrema carência material do paciente do que indícios de um estilo de vida em franca aproximação da delituosidade.



5. Recurso ordinário em habeas corpus provido para reconhecer a atipicidade da conduta e, por consequência, determinar o trancamento da ação penal.

Do blog do Frederico Vasconcelos na Folha de São Paulo.

Nenhum comentário: