terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Juiza que baniu homem da cidade em que nasceu, explica decisão que tomou.

Sob o título "O juiz no banco dos réus", o texto a seguir é de autoria da juíza Lisandre Figueira, mestre pela Universidade Federal de Santa Maria, especialista em Direito Tributário e ex-docente na UFSM e na UNIPAC (Direito Civil e Processo Civil), e foi publicada no site "Espaço Vital", de Porto Alegre (*):




Virei manchete do Fantástico. Que ironia. Eu, gaúcha da fronteira, vim parar no Sertão de Minas Gerais, com tanta pobreza e carências de recursos, com todas as dificuldades que uma comarca de vara única me impõem, e acabo virando manchete em rede nacional.



Depois de cinco anos de advocacia no Rio Grande do Sul, optei pela magistratura mineira. Assim, há quase sete anos, aceito a vida meio sacerdotal do juiz, que nos exige trabalhar mais de 12 horas por dia, sabendo que ao voltar no dia seguinte, novos processos virão.



Todos os dias revivo o mito de Sísifo. Subo a montanha de processos, todavia, resigno-me a ver a pedra rolar novamente. É um recomeçar sem fim.



Não assisti a reportagem do Fantástico, veiculada no último domingo, sobre o “homem que foi impedido de voltar para a sua cidade”, embora eu fosse uma de suas protagonistas. Por que? Porque conheço o caso e as razões do meu decidir. Nada do que seria dito alteraria a realidade fática e processual.



Dei a entrevista em razão de o tema ter tomado tamanha dimensão e por entender que toda a autoridade pública deve dar transparência aos seus atos. O fiz em respeito à comunidade de Buritis-MG, que conhece meu trabalho há cinco anos e sabe da lisura e imparcialidade dos meus julgamentos.



Por mais que tenha dado uma versão clara dos fatos ao nobre entrevistador, já previa que a tônica da reportagem seria colocar “a juíza” na posição de vilã na história.



Nada que me impressione. Basta fazer uma consulta na Internet sobre reportagens a respeito de juízes e se verá que a imensa maioria tem a finalidade de questionar a validade e a legalidade de suas decisões. Não me recordo de alguma notícia de grande alcance nacional que tenha divulgado o bom trabalho desenvolvido por algum colega. É uma pena. Talvez não venda a matéria.



Dos relatos que me chegam, fico com a seguinte impressão: alguém tomou um livro nas mãos, leu o título e a orelha de capa e tirou suas conclusões. Podemos chamar isso de leitura? Conhecer-se-á a história em seus meandros? O por quê dos acontecimentos finais? Nunca. Jamais.



Princípio básico de processo: para julgar é preciso conhecer o processo. E digo-lhes: eu o conheço. Segundo: o juiz decide com base no que está no processo.



No caso, tinha em minha mesa um comunicado de prisão em flagrante por ameaça de morte à irmã e um pedido de liberdade provisória.



Embora mulher, não presumo que em todos os casos em que há a incidência da Lei Maria da Penha a vítima esteja sempre com razão. Desse modo, adoto por praxe forense a designação de audiência para ouvir o acautelado, com a finalidade de verificar a imprescindibilidade da manutenção da prisão. Na lição de Luigi Ferrajoli, a prisão sempre deve ser a ultima ratio.



Compulsando os autos, verifiquei que a fundamentação do pedido de liberdade provisória lastreava-se essencialmente no fato de que o réu era domiciliado no Distrito Federal e que sofria de problemas de saúde, motivo pelo qual necessitava retornar a sua residência. E, de fato, tais argumentos encontravam eco na documentação anexada aos autos. Portanto, conforme o que constava nos autos o réu não morava em Buritis.



Durante a audiência, com a concordância de sua advogada constituída e do Ministério Público, entendi que não havia motivos para manter o réu preso, porém, considerando que os confrontos familiares eram frequentes, especialmente quando este vinha a Buritis, lhe deferi o benefício de liberdade provisória, mediante condições, nos termos da Lei nº 11.340/06.



Optei pelo “caminho do meio”, devolvi-lhe a liberdade, o direito de ir e vir, porém mediante condições que garantissem segurança à vítima, nos termos da Lei Maria da Penha, art. 22, II e III, “c”. Dei-lhe a oportunidade de voltar ao seu domicílio efetivo em Brasília, de tratar dos seus problemas de saúde - conforme pleiteado nos autos -, estabelecendo um prazo para que os ânimos tão acirrados se acalmassem. Quem sabe assim, o diálogo familiar se tornasse possível em outra oportunidade.



Pergunto-lhes: seria melhor tê-lo deixado preso? Seu direito de ir e vir já não estava restringido, ante o fato de que se encontrar encarcerado, autuado em flagrante por grave ameaça de morte à irmã? Alguém ousaria afirmar que prisão em flagrante não é constitucionalmente admitida, ante o disposto no art. 5º, LXI, da Constituição da República? Quantas são as decisões judiciais que, com fundamento na Lei Maria de Penha, decretam a prisão preventiva dos supostos agressores, objetivando a proteção física e psicológica da vítima?



Neste momento cabe questionar: a circunstância de a decisão ser “inédita”, a torna ilegal ou inconstitucional? O juiz deve ser apenas e tão somente aquele sujeito que “copia e cola” a jurisprudência majoritária ou a melhor doutrina? Não. Definitivamente, não. A realidade dos fatos nos exige atuação pronta e célere na aplicação do Direito e, para isso, devemos fazer uma leitura do texto legal do modo mais adequado a cada caso.



Na hipótese em comento, o interesse de ambas as partes foi alcançado. Primeiro, porque aquilo que a douta Defesa pleiteava foi deferido, i.e., a liberdade do réu. Segundo: a segurança física e psicológica da vítima foi garantida. Terceiro: A Lei Maria da Penha, no seu art. 22, II e II, “c” não estabelece limites máximos de distanciamento do agressor da vítima. Quarto: Se houvesse qualquer descontentamento com a polêmica decisão judicial, poderia o réu ter se valido dos recursos legalmente previstos ou da interposição de habeas corpus, o que não o fez.



Por tudo isso, deito a cabeça no travesseiro e durmo, com o sentimento de dever cumprido, pois talvez tenha evitado um mal maior. Evitei conflitos familiares que traziam tanta dor e sofrimento a ambas as partes. Lamentaria uma vida inteira se algo de pior acontecesse com qualquer dos envolvidos.

Já ouvi tanta coisa. “Rasgou a Constituição Federal!”. “É só mais uma menininha que passou num concurso!” “Não conhece a pirâmide kelseniana!”. “Crime de banimento!” etc, etc.



Mas, confesso, recebo as críticas desses especialistas com carinho e respeito, sejam positivas ou negativas, afinal, vivemos numa democracia.



Que fique bem claro, não tenho pretensão de unanimidade. Em cada processo, 50% das partes serão desagradadas, sairão descontentes com a minha decisão. E o Direito é assim mesmo, dialético, relativo, tantas são as opiniões divergentes sobre o mesmo tema, amparadas por doutrina e jurisprudências tão variadas.



No dia em que eu for unanimidade, mudo de profissão.”



(*) www.espacovital.com.br

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