quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Campanha do impeachment: onde tudo começou






Capítulo do livro "O jornalismo dos anos 90", que lancei em 2003.

A campanha do impeachment


Os anos 90 começaram com a “Folha” consolidada na posição de mais influente veículo brasileiro, mas com o “Estadão” e “O Globo” começando a entrar no jogo. Entre as semanais, “Veja” continuava na liderança, com a “Isto é” em segundo, mas sem ameaçá- la. Nas TVs, a Globo era absoluta, mas ainda não descobrira o marketing do jornalismo de opinião.

No início de 1990 assumiu a presidência Fernando Collor de Mello e, em seguida, houve o episódio do bloqueio de Cruzados. Um conflito na interpretação das regras do bloqueio levou um delegado truculento a invadir a “Folha”.

Começava um período de intenso conflito entre Collor e o jornal no qual, pela primeira vez no pós-democratização a imprensa ousou questionar de frente o poder imperial do presidente. E do mais imperial dos presidentes eleitos.

A disputa entre Collor e a “Folha” atingiu seu ápice com um editorial de Otávio Frias Filho na primeira página do jornal em franco desafio a Collor – então, no auge de seu poder. O efeito foi fulminante. Foi como se caísse a ficha do país de que presidentes da República não dispunham mais de poder imperial e que o novo poder que se levantava era a mídia.

No dia seguinte, a opinião pública passou a olhar Collor de modo diferente, não mais com o temor reverencial dos primeiros tempos. O novo dono do poder chamava-se opinião pública, algo muito mais fluido e indeterminado que os jornais que passaram a tentar representá-la.

A campanha do impeachment foi um marco na história da imprensa no país. E ousaria dizer que não foi para o bem. Ainda adolescente, a mídia ganhara força sem ter maturidade.

Os ecos de Watergate estavam vivos na cabeça de cada jovem jornalista brasileiro, com o escândalo sendo manipulado politicamente. Agora, se tinha o quadro completo: um presidente arrogante, cercado de amigos e ações suspeitas e a certeza –após o editorial da “Folha”—de que o presidencialismo brasileiro era um tigre desdentado.

Durante algum tempo a imprensa escarafunchou os esquemas que co-habitavam o governo Collor. Quando o assunto começou a ficar repetitivo, passou a fustigar o próprio Collor. À medida em que notícias iam se repetindo, passou-se a acusar frontalmente o presidente de desonesto. Não havia gradação maior, mas também não se podia ficar na repetição.

Até então, a campanha pecara por uma falta de rigor técnico absoluto, embora não faltassem evidências a serem perseguidas sobre a atuação nefasta dos grupos que cercavam Collor, de Paulo César Farias, que atuava diretamente com ele, aos periféricos, como Leopoldo Collor e Pedro Paulo Leoni Ramos.

Em vez da apuração técnica, a cobertura misturava acusações consistentes com rumores. Os parlamentares que compunham a CPI do Impeachment divulgavam dados sem análise mais aprofundada, e sem conhecimento técnico. Qualquer rumor era aceito, desde que criasse escândalo e fosse contra Collor. Erros, impropriedades, rumores não confirmados, tudo servia para alimentar a campanha. E a reação da opinião pública era de apoio, com os jornais e revistas batendo recordes de tiragem e de prestígio.

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Quando se bateu no ápice das acusações públicas –taxando-se Collor de desonesto--, e a campanha começou a correr o risco de se tornar novamente repetitiva, ingressou-se em uma era de ficção inédita na moderna história da mídia brasileira.

A entrevista de Pedro Collor de Mello à revista “Veja” deflagrou a segunda etapa da campanha. Sob o critério de objetividade jornalística, a entrevista era questionável. No plano jornalístico tinha pouco valor, a não ser o de expor um caso exemplar de ódio fratricida. Pedro Collor estava fora do centro dos acontecimentos, tinha ódio doentio pelo irmão, não apresentava provas, muitas de suas denúncias sequer eram verossímeis, não passavam no teste básico do bom senso.

Conferir

A campanha terminou com a renúncia de Collor e se criou um vazio na cobertura diária. Todos, jornais, revistas, televisão e seus respectivos públicos tinham se viciado no escabroso, no repugnante, no obsceno, no escatológico. E a imprensa tinha se dado conta de que podia derrubar presidentes. O tigre provara de carne fresca.

Os controles de qualidade foram relaxados, paradoxalmente no mesmo momento em que as redações adotavam mecanismos de controles formais de conteúdo.foram para o espaço. Os repórteres eram estimulados a voltar diariamente com escândalos, de que natureza fosse. A única exigência é que fosse escândalo, se real ou não era de menos.

Além do emporcalhamento da cobertura jornalística, um subproduto importante da campanha do impeachment foi ter despertado o jornalismo da TV Globo para esse modelo de esquentamento da notícia– provavelmente para evitar o desgaste que a emissora teve ao não abraçar a campanha das “diretas-já”.
Até então o jornalismo da TV Globo primara pela moderação, mesmo depois do final do regime militar. Sabia-se ter um canhão na mão e se usava com cautela. Na campanha, mudou-se o estilo, especialmente devido ao forte crescimento da influência da “Folha” e à manutenção da influência da “Veja”. A Globo tinha tamanho e abrangência, mas não formava opinião, este foi o pensamento a nortear a mudança da sua linha editorial. Anos depois, o lançamento da revista “Época”, da Editora Globo, desbalanceou o mercado de revistas semanais, buscando espaço entre a “Veja” e a “IstoÉ”.

Esses dois episódios ajudaram a elevar a temperatura das manchetes da mídia, a busca do escatológico, o linchamento, a níveis jamais presenciados na moderna história da imprensa brasileira.

Sufocando critérios técnicos mínimos de checagem, essa sede por escândalos abriu espaço para uma das mais espúrias alianças do jornalismo moderno: repórteres especializados em escândalos com escritórios lobistas de Brasília, cuja influência remonta ao início do governo Collor.

Na época, o estilo Collor permitiu o crescimento desses grupos de lobistas e suas primeiras relações, ainda que conflituosas, com a chamada grande imprensa.


O que se viu dali em diante foi uma catarse diária, um vomitório sem fim. Matérias afirmando que Collor injetava cocaína por supositório, que fazia sessões de umbanda nos salões do Palácio do Alvorada, que a primeira dama era sapatão, que Collor ficava catatônico e, para sair da crise, tinha que ser penetrado por seu chefe de gabinete. Não se sabia mais de que lado havia mais falta de escrúpulos: se do lado de Collor ou da mídia, e


de suas fontes, todos aspirando aos seus quinze segundos de glória.

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Uma de suas grandes armas nas lutas comerciais ou políticas passou a ser a fabricação de dossiês ou de denúncias vagas ou simplesmente falsas, como insinuações sobre homossexualidade ou desonestidade de figuras públicas. Mas seu raio de ação se limitava a uma certa imprensa marrom que vicejava em pequenas publicações patrocinadas por grupos de interesse. Jornalistas da grande imprensa que se aliassem a esses grupos terminavam profissionalmente queimados. Tanto que esse papel de “imprensa marrom” era exercido por jornalistas que já tinham perdido espaço na grande mídia.

O fato inédito foi os lobistas terem conseguido furar esse esquema de clandestinidade e se infiltrado na grande imprensa, após a campanha do impeachment ter desmontado os sistemas de controle de qualidade editorial.

Definiram-se pactos de sangue complicados. Em geral, esses grupos recorrem a operações criminosas, como grampos e fabricação de dossiês. Quando a imprensa passou a acolher esse material, sem questionar a veracidade, muitas vezes sequer a verossimilhança, permitiu duas espécies de dossiês: os que saíam publicados na imprensa e aqueles que se constituíam em instrumentos bem sucedidos de chantagem.

Alguns desses escândalos acabaram recebendo prêmios nacionais, alguns chegaram a ameaçar a estabilidade política, mesmo não passando em nenhum teste de consistência. No fundo, foi a premiação que consagrou esse jornalismo de dossiês, impedindo que o jornalismo de opinião entendesse a tempo o desgaste que significaria para sua credibilidade.

http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/campanha-do-impeachment-onde-tudo-comecou#more

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