Um novo trecho de “Minha Tribo: o Jornalismo e os jornalistas”
É interessante o que aconteceu no jornalismo brasileiro nos últimos 50 anos, quando o país se modernizou economicamente.
Na época da ditadura militar, os donos das grandes empresas mantinham perfil baixo. Por motivos óbvios: havia risco. Ditaduras têm relação sempre áspera com o jornalismo. A exceção conspícua aí era Roberto Marinho, da Globo. Ele era “absolutamente confiável”, para os militares. Podia dizer que “dos seus comunistas” cuidava, e era verdade. Os comunistas que trabalhavam com Roberto Marinho não escreviam nada que pudesse alimentar sua causa.
Os demais donos não gozavam da mesma confiança dos militares. Os Mesquitas, que tinham apoiado a Revolução de 1964, exigiram depois que os militares voltassem logo para os quartéis. Mas os generais tinham gostado do poder, e terminaram por censurar o Estadão por muitos anos. Na Folha, sob Octavio Frias de Oliveira, você teve um jogo duplo. Frias não era um “pensador” como os Mesquitas.
Durante muitos anos ele manteve um jornal que era seu gesto de confraternização com o regime, a Folha da Tarde. Iniciei minha carreira nele. Você parecia às vezes estar não numa redação, mas num quartel. Antogio Aggio Filho, o editor-chefe, era de extrema-direita. O secretário de redação, Rodrigão, era militar. O redator-chefe, Torres, tinha livre trânsito no Dops. Não vi isso, mas contavam na redação que Torres uma vez subira numa cadeira para defender a morte de guerrilheiros – ou terroristas, como eles os chamava. A meu lado, na redação, trabalhavam um coronel, apelidado exatamente assim, Coronel. Era discreto, simpático. Guardo boas lembranças das conversas supérfluas que travávamos ali no fechamento.
Aggio foi posto no cargo de diretor da Folha da Tarde em 1969 por Frias, segundo quem a decisão se devia à competência do jornalista e não a seu trânsito com os militares. Ele varreu da redação as pessoas de esquerda. O jornalista Jorge Okubaro, que mais tarde se tornaria editorialista do Estadão, viveu a transição. “Alguns foram demitidos sob alegação de incompetência, mas o verdadeiro motivo da demissão foi o fato de terem, em algum momento, feito ou participado de alguma manifestação que os caracterizava como de esquerda, seja pelas conversas pessoais, seja pelos textos que eventualmente publicaram”, lembra Okubaro.Em 1984, quando a democracia já era visível, Aggio foi demitido.
A Folha era relativamente preservada. Mesmo assim, Frias uma vez pediu a meu pai que escrevesse um editorial no qual dissesse que não havia presos políticos. Todos os presos seriam iguais. Papai não topou, e pagou o preço do congelamento. Ter jornalistas importantes em cargos de destaque era conveniente, na ditadura, para os momentos mais complicados. Quando o regime imprensou a Folha depois que o cronista Lourenço Diaféria escreveu que o povo “mijava” na estátua do Duque de Caxias, uma absoluta verdade como sabe quem a conhece, Frias pôde oferecer a cabeça de Claudio Abramo, o diretor de redação, para apaziguar as coisas.
Terminada a ditadura, o quadro mudou. Ter redações sob o comando deixou de ser um risco. Passou a ser o que é sempre em situações normais: fonte de prestígio e status.
Os jornalistas deixaram de ser um escudo. Foi quando eles, lenta, segura e gradualmente, foram perdendo espaço e voz nas corporações. A voz dos donos foi avultando. Sem entender esse processo, ninguém conhece compreender o que aconteceu com a mídia brasileira no último meio século.
Daí a semelhança no tom mesmo de empresas aparentemente tão diferentes, como a Folha e a Globo. De Arnaldo Jabor a Clóvis Rossi, de Ali Kamel a Merval Pereira, os colunistas reproduzem com mínimas variações o pensamento do estabislihment. Os jornalistas, como indivíduos independentes de suas empresas, só voltariam a encontrar microfone com a internet. O mundo digital, com sua anarquia incontrolável, romperia o domínio das opiniões. Mais do que por razões econômicas, que existem de resto, este é o principal motivo pelo qual a internet incomoda tanto as grande empresas.
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