quarta-feira, 25 de abril de 2012

Linguiça com mímica


por CLARA BECKER
Alexis Pier Aguayo levou a mão ao queixo com o polegar e o mindinho abertos. Balançou a cabeça em sinal negativo e passou o indicador no pescoço, como se o cortasse. Bateu as costas da palma da mão direita sobre a esquerda, contou até cinco com os dedos, fez um círculo em torno da bochecha com o indicador, levou dois dedos arqueados à boca e depois para a frente. Em seguida, pôs-se a esperar, com as duas mãos fechadas, coladas uma à outra, pronto para voltar à ação.
Num pequeno estúdio de tevê em cima do plenário da Câmara, Aguayo estava se desculpando pela confusão que acontecia à sua frente. Na tribuna, dois deputados maranhenses – o petista Domingos Dutra e Francisco Escórcio, do PMDB – travavam um bate-boca a respeito do senador José Sarney. Com gestos diligentes, Aguayo explicou aos telespectadores surdos que, por conta do quebra-pau, não seria possível prosseguir a tradução. Só retomou o trabalhoquando Escórcio, aos berros, foi retirado pela segurança da Câmara depois de tentar agredir o colega.
A cena se repete a cada vez que uma discussão acalorada toma conta do plenário. Aguayo se diverte com a pancadaria verbal dos parlamentares e não se furta de traduzir palavrões e ofensas que, em geral, são retirados das notas taquigráficas feitas para registro das sessões.
Brasiliense de 28 anos e 1,94 metro de altura, Aguayo faz parte da equipe de tradutores da língua brasileira de sinais – ou Libras – a serviço do Congresso. Muitos aprenderam a se comunicar com gestos para conversar com parentes e amigos surdos – no caso de Aguayo, o irmão mais velho. Em dois turnos, eles se revezam para levar aos deficientes auditivos de todo o país os debates do plenário transmitidos pela TV Câmara, além de traduzir in loco eventos da Casa e sessões das comissões. Os que trabalham cinco dias por semana recebem 3 500 reais.
Aguayo disse saber reconhecer os deputados pela voz. Os discursos que prefere traduzir são os de ACM Neto, do DEM da Bahia, e Paulo Teixeira, do PT paulista. “São dois grandes oradores.” Já o deputado que mais dá trabalho à equipe da TV Câmara é Paes Landim, do PTB do Piauí. “Sua voz é grave e arrastada e ele tem algum problema respiratório, é difícil entender. Até a taquigrafia tem dificuldade.”
Há um ano e quatro meses na função, o tradutor tem-se mostrado um talentoso crítico da retórica parlamentar. “O deputado Alceu Moreira [do PMDB gaúcho] deveria fazer discursos para motivar a tropa antes de ir para a guerra”, afirmou. “Já o deputado Silvio Costa [do PTB de Pernambuco] tem uma veia cômica que me atrai. Quando a sessão vai até muito tarde, ele diz que é uma afronta ao Estatuto do Idoso.”
Aguayo se aflige com a redundância que acomete oito em dez deputados. “Eles dizem a mesma coisa durante dez minutos só para usar todo o tempo de discurso”, explicou. “É quase uma questão de honra.” Para infortúnio dos tradutores, encher linguiça com gestos é bem mais difícil. “A língua de sinais tem uma estrutura de pensamento diferente”, disse. “Não é como no português, em que você pode inverter a ordem das palavras e fazer uma frase nova.”

uma quinta-feira de março, Alexis Aguayo estava cansado. Na véspera, ajudara a traduzir um seminário da Câmara sobre o Dia Mundial das Doenças Raras. Teve que se virar para designar sintomas, prognósticos e terapias para males como porfiria, neurofibromatose e esclerose lateral amiotrófica. Foram três horas de tradução ininterruptas – e inúteis. “Não havia um único surdo na plateia”, disse, resignado. Aguayo está habituado a sinalizar para o vazio. “Por causa da Lei da Acessibilidade é obrigatória a presença de tradutores de Libras.”
Três profissionais se revezavam em sessões de vinte minutos. Aguayo substituiu Luciana Marques no momento em que o deputado Sebastião Bala Rocha, do PDT, louvava os avanços do Amapá na defesa dos direitos da mulher.
Em plena tradução, notou pelo monitor que sua cabeça estava cortada. Ao mesmo tempo que ouvia o discurso de Rocha e o transformava em sinais, pôs-se a orientar o operador de câmera para corrigir o enquadramento, num malabarismo espantoso. “Só não dá para manter a conversa paralela por muito tempo, aí compromete a qualidade da tradução”, explicou.
Como o áudio da sala não é captado, Aguayo às vezes comenta inadvertidamente a fala que está traduzindo. Num discurso recente, o deputado petista Décio Lima exaltou o desenvolvimento do país. “O Brasil inveja muitas nações no mundo, mas cresce respeitando a natureza, e não a destruindo, como outras nações fizeram.” Na cabine, o tradutor não pôde evitar: “Ah, tá bom!”
Seu semblante se transforma a cada vez que um novo orador toma a palavra. “Escuto a voz e meu rosto já começa a ficar igual ao do deputado”, constatou. “É automático.” Aguayo critica os colegas mais protocolares que não incorporam o personagem traduzido. Para ele, o bom profissional tem de passar o tom, o espírito e a emoção da mensagem. “A expressão facial e a corporal fazem parte da tradução”, ensinou. “Não posso traduzir sorrindo alguém que chora porque o cachorro foi atropelado.”
A tradução é feita numa sala gélida com paredes azuis. As portas de vidro fino deixam entrar todo tipo de ruído externo e a cortina vermelha, sempre aberta, faz dos tradutores uma atração para quem visita o Congresso. Crianças colam a cara no vidro caprichando nas caretas e adultos se detêm ali para contemplar a gesticulação frenética. Simpático, Aguayo tenta esboçar um sorriso sempre que pode. “Só tenho medo de que um dia joguem amendoim para ver se a gente come.”

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