quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A Ética Entre Os Jornalistas


MEU PAI, DE GRAVATA, NA REDAÇÃO: O LIVRO É PARA ELE
Estou escrevendo um livro sobre jornalismo. Meu maior receio é que se torne mais uma edição das Memórias de um Átomo, de Ega, personagem de Os Maias, de Eça de Queiroz. Lá, Lisboa inteira espera o romance de Ega, que afinal não vem. Não que alguém espere meu livro, mas não gostaria de repetir As Memórias de um Átomo. Acho que falta bibliografia jornalística no Brasil, algo essencial para que os jornalistas se avaliem, se critiquem e melhorem.

Vou, regularmente, publicar um trecho aqui no Diário. Entre outras coisas, será uma lembrança para mim de que a experiência de Ega não deve se repetir em mim. Começo com um assunto menos cuidado nas redações do que geralmente se imagina: os brindes para os jornalistas, uma velha e barata prática para conquistar (ou comprar) simpatias editoriais. O livro é dedicado a meu pai, o maior jornalista que conheci, e em quem tive lições práticas cotidianas de honradez no trabalho.
Por Paulo Nogueira
ÉTICA, NO JORNALISMO COMO EM TUDO, É UM CONCEITO EM CONSTANTE mudança. Coisas que se aceitavam um dia podem, na semana seguinte, ser tidas como absurdas. No início dos anos 80, por exemplo, quando eu era um repórter iniciante, era comum jornalistas tirarem carros com desconto das montadoras.
Funcionava assim. A montadora vendia a você sem a comissão da concessionária. Isto significa um preço entre 15% e 20% abaixo do pago pelo consumidor. Comprei um carro assim. Era banal. Posteriormente, no correr dos anos, entendeu-se que a imagem de independência do jornalista e de seu veículo poderia ficar ameaçada. A ética foi reescrita, e já faz tempo que é reprovada a compra privilegiada de carro.
A mesma revisão se deu para os brindes. Na década de 1980, os almoços de finais de ano promovidos pelas empresas eram cobiçados pelos jornalistas, não pela notícia que poderiam cavar ou pela possibilidade de encontrar velhos amigos. Os presentes dados aos jornalistas, naquelas ocasiões, eram realmente caprichados. Uma vez saímos, todos os repórteres, com um Walkman recém-lançado. Posteriormente, viu-se que também isso não era bom.
Sempre temi repetir As Memórias de um Átomo
Grandes empresas criaram na década de 1990 um código para presentes que vigora até hoje. Basicamente, eles não podem ultrapassar um valor ao redor de 200 reais. Uma boa gravata, tudo bem. Um iPhone, nem tanto. A melhor lógica que vi nesse tópico e em outros encontrei em José Roberto Guzzo, diretor da Veja e da Exame por mais de 20 anos. Guzzo é aquele tipo raro de pessoa que faz coisas complicadas parecerem simples. Lembro com saudade dos finais de tarde na Exame, no final da década de 1990, em que saía de minha sala para ir à de meu vizinho e chefe, para conversar de jornalismo, literatura policial e pôquer. “Não faça nada que, publicado, embarace você”, dizia Guzzo sobre questões de conduta ética. A sabedoria prática e espirituosa de Guzzo é encontrada hoje na coluna quinzenal que ele escreve na Veja.
É uma boa divisa a dele.
Por estar em constante mutação, ética jornalística é um tema que requer acompanhamento permanente. Para mim, um tema que, nos dias de hoje, merece discussão imediata são as palestras (remuneradas) de jornalistas. Você tem uma coluna de economia e é contratado por um banco para dar uma palestra. Como vai tratar depois de uma informação negativa para esse banco? A Folha de S. Paulo apertou o parafuso em torno disso. Seus jornalistas não podem fazer palestras que não sejam gratuitas.
Certíssimo.
HÁ UMA SENSAÇÃO entre os jornalistas de que coisas básicas como a política de brindes já estão devidamente estabelecidas, pelo menos nas grandes empresas. Mas não é bem assim. Em minha passagem pela Editora Globo, em meados da década de 2 000, vivi um episódio penoso.
Chegou a mim a informação de que o diretor de redação da revista de negócios da editora, Nelson Blecher, voltara com presentes dados por todos os patrocinadores de um encontro de presidentes de empresas. Era algo como 16 brindes. Que os executivos que comparecem a tais encontros aceitem brindes, que de resto não costumam ser modestos, é uma questão que cabe a suas empresas analisar para verificar se há ou não conflito de interesses.
Mas já fazia um bom tempo que se entendera que um jornalista não poderia aceitar aquele tipo de coisa. Fiquei extremamente irritado e convoquei uma reunião de editores para debater o assunto. Não havia, para minha surpresa, uma política clara que governasse a questão dos brindes na editora.  Pedi que imediatamente fosse adotado um limite de acordo com o bom senso.
O quanto esse episódio foi desgastante, os fatos posteriores contam. Minha relação com Blecher — que eu levara para a Globo, ao cabo de alguns meses em que ele me procurara com insistência desde antes mesmo que eu assumisse o cargo de diretor editorial  — se deteriorou. E logo se romperia, um fato determinante para a minha saída do posto de diretor editorial da Editora Globo. Blecher acabou indo ao Rio de Janeiro falar de mim a Jorge Nóbrega, um discreto, obediente e bem cotado conselheiro da família Marinho.  Jamais, em minha carreira, consegui lidar bem com executivos com o perfil sibilino de Nóbrega. Não os admiro — longe disso — e isso fica claro em mim. Para mim, aquela é uma classe de executivos que vicejam à sombra do trabalho duro, muitas vezes épico, de outra classe de executivos — os que correm riscos e são capazes de transmitir às pessoas um sentimento de causa que transcende salários e benefícios.
A lembrança mais vívida que guardo de Nóbrega é a espera de 40 minutos a que fui submetido por ele em condições de estresse extremo na conversa no Rio  — longa, inútil, em que ele fazia anotações provavelmente destinadas ao lixo — em que teoricamente eu teria a oportunidade de me defender das acusações de Nelson Blecher. Logo ficaria claro que ele ouvira Blecher, a quem pagara a passagem para um encontro marcado sem que eu soubesse, com muito mais interesse do que a mim. Uma das ironias é que eu sempre elogiara Blecher no Rio, dando-lhe créditos que, a rigor, não eram dele. No mesmo Rio, ele fez o oposto em relação a mim. Se eu tinha que encontrar um Calabar na carreira, ali estava ele, na improvável figura de alguém que me tratava como um ídolo mais que como chefe. Passei, antes de assumir o cargo na Globo, uma semana num hotel em Águas de São Pedro para descansar. Deixei o celular desligado. Ao ligá-lo, a primeira mensagem que havia era de Blecher se oferecendo para dirigir a Época.
COM MEUS FILHOS, EM MEADOS NOS ANOS 90, QUANDO VIVI MINHA MELHOR EXPERIÊNCIA AO LADO DE LONDRES, NA EXAME
OS BRINDES INAPROPRIADOS eram, na verdade, o segundo problema grande que eu tinha com Blecher em um curtíssimo espaço de tempo. O primeiro se dera na maneira como ele tratara da demissão do redator-chefe Ivan Martins. Fazia tempo que Blecher se queixava a mim de Ivan, que segundo ele não o respeitava e tinha uma relação complicada com a equipe. Disse a Nelson que resolveríamos a questão assim que Ivan voltasse de suas férias. A parceria não funcionara na Negócios, mas Ivan poderia ser aproveitado em outra redação. Blecher, contra minha recomendação expressa, avisou a equipe de que demitiria Ivan.
Como era de esperar, um amigo de Ivan imediatamente telefonou a ele para dar a notícia. Ivan acabara de chegar à Espanha, para onde levara a velha mãe espanhola para uma viagem sentimental. Não poderia haver maneira pior para demitir alguém, algo particularmente bizarro numa revista que escrevia artigos sobre como mandar embora com dignidade alguém. Só soube da história quando recebi um telefonema de um boletim de notícias de redações me perguntando se era verdade que Ivan tinha sido demitido em plenas férias. Fora a questão humana, a reputação da Negócios — cujo projeto eu elaborara com imenso capricho e entregara pronto a Blecher para executá-lo, sob meu acompanhamento de perto — ficaria manchada. Disse a Ivan que falaríamos sobre sua situação na volta das férias e procurei tranquilizá-lo. Hoje, ele é editor executivo da principal revista da Globo, a Época. A Blecher, avisei que só não o demitia por termos uma longa história em comum. Um pouco depois ficaria claro meu erro em não ter feito o que deveria. A amizade não pode se sobrepor a decisões executivas objetivas.
O episódio dos brindes acabaria com o resto de paciência (que os anos desgastantes como chefe foram progressivamente reduzindo, é verdade) que me restava. Não me consta que os brindes recebidos por Blecher no encontro de executivos tenham sido devolvidos, conforme eu determinara. Imagino que não, porque, não muito depois, soube que ele fora a um novo encontro de presidentes de empresas, desta vez em Portugal, acompanhado do seu novo chefe.  O que sei é que a crise provocada pelo caso tornaria minha permanência na editora inviável.
Meu temperamento também virou conversa de café. Sou fácil? Não. Sou explosivo? Sim. Eu gostaria de trabalhar com um chefe como eu? Não sei, sinceramente. Mas o fato é que as pessoas que eu levei para a Globo me conheciam muito bem. Eu apenas mudara de escritório, não de personalidade. Na Exame, onde como diretor de redação chefiei Blecher, reescrevi textos seus inúmeras vezes. Não com a polidez de diplomata, admito, anotei em laudas coisas que o ajudariam a redigir melhor. Ele tinha um problema irritante de dispersão em textos. Com meu traço precário, fiz algumas vezes um desenho em que mostrava uma estrada. Como numa viagem, uma reportagem deve sair de um ponto e terminar em outro. Dispersões longas equivalem a pegar desvios. Os textos de Blecher acabaram melhorando. Em alguns momentos na Exame, teatralmente, amassei capas  de que não gostara, passadas para mim por meu grande amigo Píndaro Camarinha Sobrinho, então diretor de arte da revista. Lembramos disso, hoje, em meio a risadas e cerveja em sessões nostálgicas. Amigos leais e queridos como Píndaro e Sérgio Berezovsky, com quem compartilhei anos em redações, foram a contrapartida preciosa para instantes particularmente difíceis. Ambos, sem que eu fizesse um movimento, romperam imediatamente relações com Blecher.
Nas manobras subterrâneas contra mim, Blecher encontrou uma aliada perfeita em Cynthia de Almeida, articulada, inteligente e astuciosa. Eu levara Cynthia para a Editora Globo como adjunta. Minha expectativa era que ela revigorasse editorialmente as revistas femininas, notadamente a Marie Claire, e a revista de celebridades Quem. Passados dois anos, eu estava desapontado com os resultados. A Época fora reinventada. Duas revistas novas, a Época Negócios e a Época São Paulo, chegaram com um frescor que me agradava. Mas a Marie Claire e a Quem tinham melhorado, é certo, mas bem menos que eu esperava.  Sacudir revistas femininas e de celebridades era, naquela época, uma vontade forte minha. Em duas décadas de carreira, jamais tinha tido a oportunidade de submeter aquele tipo de publicação a um choque criativo. Eu estava começando a acompanhar de perto a Marie Claire e a Quem, em conversas com suas editoras e não apenas com Cynthia, quando os acontecimentos se precipitaram.
COM O CASAL GUZZO EM LONDRES: A SABEDORIA PRÁTICA DE GUZZO É INSPIRADORA
Blecher e Cynthia tinham um elemento forte de união naquele momento: o medo de que fossem demitidos por mim. Eles se reuniam, eu saberia depois, no 4.o andar, longe da minha vista. Uma jovem jornalista identificada com a plataforma transformadora que eu imprimira à Globo, Maria Rita, cuja sala ficava também no 4.o andar, diria em tom de lamento para mim, depois que os acontecimentos se precipataram. “Eu devia ter falado com você sobre aqueles encontros, mas não imaginei que fossem dar no que deram”. Maria Rita, que era uma liderança nova no jornalismo feminino à frente da Criativa, deixou a Globo pouco depois de minha saída, atraída por um convite da Abril. Ela fez o que as pessoas fazem quando estão insatisfeitas num lugar: pedem demissão.  Quando ouvi, por interpostas pessoas, que Blecher tinha “pedido demissão” ao RH da Globo por causa de meu temperamento, achei graça. Se ele quisesse de fato sair, teria simplesmente entrado em minha sala — da qual ele era o frequentador mais habitual na empresa — e dito que estava fora.
Eu já estava decidido a levar para a Globo Adriano Silva, com quem tivera uma experiência de transformação bem sucedida na Superinteressante. Não pensava em demitir Cynthia, embora decepcionado com os resultados editoriais trazidos por ela. Ia dar parte das revistas sob ela para Adriano, de forma que Cynthia pudesse ter mais tempo para cuidar das duas revistas que, para mim, demandavam urgentemente vigor editorial. Sob mim, ficariam dois diretores editoriais. Minha saída acabou tornando morta a negociação — avançada já até na definição de salário — com Adriano. Adriano, um talento natural de formador de times, um gaúcho competente e bem humorado que conheci quando ele fazia MBA em Kyoto e me mandou um artigo sobre a Toyota, foi uma vítima colateral de um conflito que nada tinha a ver com ele.
Ele já vinha colaborando informalmente com a editora. Escrevia uma coluna masculina provocativa na Marie Claire, uma continuação de uma que fazia na revista Nova quando trabalhava na Abril. Sua coluna na Marie Claire foi imediatamente suprimida com minha saída.  Em certos jornalistas há o triste costume de executar os feridos. Numa coluna sobre carreira que mantinha na Criativa, Cynthia escreveu um artigo cruel em que me citava indiretamente — isso quando eu já estava nocauteado, fora da editora. Aprendi com meu pai que é nos momentos extremos que você conhece o caráter das pessoas.
Debates em torno da ética não eram propriamente novidade para mim na minha nova casa. Quando cheguei à  Editora Globo, em janeiro de 2006, encontrei, para minha surpresa, uma terra de ninguém no campo da ética jornalística. Eu vinha de 25 anos numa empresa exemplar nesse campo, a Abril, e sabia também que a TV Globo tinha um código de ética severo para seus jornalistas.
Por que então a permissividade na Editora Globo?
Por duas razões básicas. A primeira é a distância entre o Rio, sede das Organizações Globo, e São Paulo, onde é administrada a editora. Essa distância se mitigaria se o executivo a quem Juan prestava contas, Nóbrega, fosse com alguma regularidade a São Paulo, mas isso não acontecia. A segunda é que o diretor-geral naquele momento, o basco Juan Ocerin, era um homem de visão estritamente financeira. Juan, com quem tive uma convivência tumultuada desde o início, tinha um precário conhecimento editorial. Sem isso, e com uma sede de bônus que lhe permitissem comprar as BMWs guiadas por motoristas da editora e  que ficavam à vista dos jornalistas cujos borderôs tinham sido espremidos, Juan não tinha condições de entender a importância da ética no jornalismo.
Juan fora cuidar da editora num momento de crise financeira extrema. Ele tinha passado pela consultoria Booz-Allen, pela Volkswagen e pelo jornal O Globo, sempre em cargos financeiros. Com seu sotaque espanhol fortíssimo e uma notável capacidade de girar por vários assuntos ao mesmo tempo, não era, do ponto de vista da clareza, o melhor interlocutor que eu tivera. Os jornalistas que encontrei na Globo não gostavam de Juan e se vingavam contando fofocas. Uma das mais pitorescas que me chegaram dizia que, numa edição em que a venda de carros usados era o tema forte da revista Auto Esporte, um carro seu fora anunciado.
Minha primeira experiência desagradável com Juan se deu assim que cheguei à Editora Globo. Nas nossas negociações, incluí uma cláusula de saída. Eu estava deixando uma casa em que tinha uma situação tranquila até os anos que restavam para minha aposentadoria, e entrando numa outra em que era intensa a rotatividade. Era natural, assim, que eu me protegesse.
ESSA CLÁUSULA e outros pontos de nosso acerto foram escritos por Juan num guardanapo do bar do hotel George V, em São Paulo, onde nos encontramos algumas vezes para negociar minha ida à Editora Globo. Quando me foi dado, já na sede da empresa, o contrato para que eu assinasse, levei-o para casa e passei para minha então mulher que checasse. Dei a ela o guardanapo das anotações. Ela notou a ausência da cláusula de saída.
Estranhei. Falei com Juan no dia seguinte, e ele disse que houvera algum erro no Departamento Jurídico.  No dia seguinte, recebi uma nova cópia. Passei mais uma vez a minha ex-mulher. Estava incluída, agora, a cláusula de saída. O que ela não notou e muito menos eu é que, entre vírgulas, havia uma frase que ia minando a proteção. Era uma cláusula autodegradável. Quando minha demissão foi definida ao fim da crise iniciada com Nelson Blecher, fui discutir com a direção geral os termos da saída. Juan saíra, e em seu lugar estava seu braço direito desde a primeira hora, Frederic Kachar,  Fred, como Juan um executivo de formação estritamente financeira.
Foi Fred, a quem a área jurídica respondia quando fui contratado, que me contou o detalhe que me escapara em minha proteção. “É assim que funcionam os contratos imobiliários”, ele me disse. Apenas não se tratava de um contrato imobiliário. Eu tinha recebido luvas na transferência. No documento que assinei estava estabelecido que eu teria que devolvê-las caso saísse da editora antes do prazo de vigor do contrato — três anos. Mas ali o adendo de autodegradação não aparecia. Jamais digeri o episódio. Numa troca de emails, eu já em Londres, Fred escreveu que se sentia incomodado com minhas palavras reprovadoras sobre o caso, uma vez que ele cuidara de minha rescisão. “Se você se sente incomodado com isso, imagine eu”, respondi.
De um amigo, recebi a melhor recomendação quando contei a ele a história. “Aquele tipo de negociação tem que ser feita de advogado para advogado.”
Foi num ambiente de ética lassa que acabei topando com figuras como o governador do Amazonas, Eduardo Braga. Braga comprava livros da editora e, em troca, esperava que fosse objeto de reportagens promocionais da principal revista da casa, a Época. Quando publicamos, logo no início de minha gestão, uma reportagem crítica sobre ele, Braga deu um jeito para marcar um encontro comigo na editora. Foi péssima a conversa. Braga subiu de tom e eu lembrei a ele que aquela não era sua casa para falar tão alto. Braga disse que falaria de mim num encontro que, segundo afirmou num tom entre triunfal e intimidador, teria com a cúpula das Organizações Globo. Não fiquei minimamente preocupado. Sabia que no Rio a ética era diferente da de São Paulo.
TERMINADA A CONVERSA, Braga ligou de seu celular. no carro, para o executivo que cuidava das relações entre a editora e ele, o então diretor de publicidade Jota Erre. A pedido de Braga, o celular de Jota Erre foi encaminhado prontamente a Juan Ocerin. Juan ouviu do governador a única coisa sobre a qual concordamos: que nossa conversa tinha sido horrível.
Não sou Poliana, mas aprendi a ver que não raro coisas ruins se transformam em boas com o correr dos dias. Não fosse minha saída (traumática) da editora e não teria vindo a Londres. Ao lado dos anos passados como diretor de redação da Exame, na década de 1990, foi a experiência mais fascinante que tive até aqui em minha carreira de jornalista.
SEMPRE QUIS ser correspondente, mas a carreira e as circunstâncias me levaram para outro caminho. Em duas conversas com João Roberto Marinho, disse a ele que se a empresa achasse que fiz um bom trabalho na editora gostaria que a recompensa fosse o aeroporto e um posto de correspodente. João, de quem guardo boa impressão pela simplicidade serena e transparente com que administra a complexidade editorial das Organizações Globo e as pessoas que respondem pelas diversas mídias, me pareceu em ambas as ocasiões ter ouvido com atenção.
João comanda as reuniões editoriais da Globo nas manhãs de terça-feira, no prédio do Jardim Botânico. Está quase sempre em mangas de camisa. Não é quem mais fala, o que é compreendível em face da tagarelice típica de jornalistas reunidos,  mas quando se manifesta — pausadamente, num tom baixo — fica claro quem manda ali naquela sala. É ele o guardião da linha liberal, à Thatcher, das mídias da Globo.
O aeroporto acabou aparecendo para mim. Tecnicamente, talvez fosse mais indicado rumar para Pequim, hoje a capital do mundo. Mas Londres, para pessoas da minha geração, é Londres. De resto, a melhor mídia do mundo ainda está aqui, a começar pela BBC. Londres tem sido um MBA para mim.  Aqui, acabei me digitalizando. Não foi tão fácil assim para quem, como eu, tinha quase 60 anos de papel — os 30 de meu pai na Folha e mais os 25 meus nas revistas em que trabalhei.
EM LONDRES, ME REINVENTEI
Reinventei-me em Londres. Voltei a fazer o que menos fizera desde que assumira cargos executivos: escrever. Em Londres entendi que nunca mais quero ser executivo. Ao voltar ao Brasil, posso gozar de merecida aposentadoria. Ou quem sabe montar, numa parceria com investidores profissionais, um site inovador, ao modelo do The Daily Beast ou do The Huffington Post. O bom senso me chama para a primeira hipótese: jornalistas morrem cedo, e eu já estou com 54, a idade com que meu pai adoeceu para morrer. A paixão pelo jornalismo me empurra para a segunda.
Londres merece um capítulo à parte neste livro  — um contraponto majestoso a uma saída tumultuada. Sou, por isso, grato à Globo, a despeito de uma saída em que foi particularmente dura a sensação de ter sido traído por um grupo de pessoas que eu próprio levara para a Globo. Registrei minha gratidão à Globo mais de uma vez a João Roberto.
Eu sempre me julgara um bom formador de equipes. Aprendi, ali, que o maior erro que alguém pode cometer é se cercar de bajuladores.  Eles podem dar a você uma sensação momentânea de ser o máximo. Mas a bajulação acaba forjando ressentimento em quem a pratica sem que você se dê conta até a hora em que o sangue escorre de suas costas. Os companheiros leais que tive como chefe nunca hesitaram em me contestar, quando acharam que deviam. Só assim se forja uma relação saudável. Se alguém me pedisse um só conselho sobre como montar times, diria: não contrate bajuladores. De resto, tendem a ser eles que colocarão em risco o respeito a limites éticos que, ultrapassados, provocam danos à imagem de jornais, revistas, sites ou o que for.

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