quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O caso Palocci em minha carreira


Do Diário do Centro do Mundo

by Paulo Nogueira
Palocci
Para o livro “Minha Tribo — o Jornalismo e os Jornalistas”, que pode ser lido aqui, escrevi um capítulo sobre o tristemente célebre Caso Palocci. Consolidei textos que escrevi no Diário, e o fruto está abaixo.
O caso Palocci foi um dos episódios mais desagradáveis de minha carreira.
Palocci foi quem fez chegar a nós, na redação da Época, em 2006, informações que supostamente desqualificariam um caseiro de Brasília que dissera que ele frequentava uma mansão pouco recomendável quando ele era ministro da Fazenda. Na época, eu era diretor editorial da revistas da Globo, a principal das quais era e é a Época.
Numa inversão patética dos princípios sob os quais nasceu o seu PT, Palocci ali era o poderoso querendo esmagar de qualquer forma o humilde.
Palocci, acusado pelo caseiro de comportamento indevido para um ministro, manobrou nos bastidores com dados sobre a conta corrente do caseiro.  A privacidade financeira deste foi invadida e descobriram em sua conta depósitos que mostrariam que ele recebera dinheiro para denunciar Palocci. Palocci, portanto, seria inocente.
Para encurtar, não havia fundamento nas contra-acusações. O caseiro estava limpo. Palocci, não. Ele mentiu insistentemente ao dizer que não tinha sido ele que tramara contra o caseiro. Dê um “Google” e pesquise. Você encontrará uma pilha em que se misturam mentiras e cinismo.
Foi Palocci, sim, quem passou o “Dossiê Caseiro”.
Como é comum nestas situações, a informação foi passada não diretamente à redação – mas à cúpula das Organizações Globo. Muitos políticos preferem conversar diretamente com os donos, e não com os jornalistas. Não é uma peculiaridade brasileira. Churchill só falava com os proprietários quando era primeiro-ministro do Reino Unido. (Isso não impede Clóvis Rossi de ficar continuamente embasbacado com o grande furo da doença de Tancredo Neves dado pelo velho Frias.)
Foi um momento particularmente penoso em minha carreira de editor, por motivos óbvios. Ninguém vai fazer jornalismo para depois ajudar um ministro a desmoralizar um caseiro de forma fraudulenta. Nossos sonhos e ilusões são bem mais elevados.
O erro é apenas ligeiramente mitigado pelas circunstâncias. Quando você trabalha numa revista semanal de informações, a pressão para que você consiga furos é imensa. O risco de um erro é grande – você quer muito dar o furo e em geral o tempo para checagens mais elaboradas é escasso. Você pode cometer uma barbaridade. Foi o caso nosso na Época, no chamado “Escândalo do Caseiro”.
O que aconteceu ali foi, inicialmente, um fato corriqueiro nas redações. Chegaram a nós informações de fonte supostamente segura segundo as quais Francenildo teria recebido dinheiro para denunciar Palocci.
A fonte supostamente segura era, naturalmente, Palocci.
Da parte da publicação, não houve maldade em momento nenhum – e em escalão nenhum. Foi um procedimento 100% jornalístico. Tínhamos uma grande notícia ali, ou pelo menos assim parecia.
Vamos lembrar que você está numa redação de uma revista semanal, em que a pressão por furos vigora em regime de 24 horas por 7 dias.
O que acontece – ou acontecia, pelo menos; não acompanho a ciranda desde que vim para Londres – quando uma semanal dá um furo? Você consegue, de cara, um espaço nobre no Jornal Nacional. É um momento de gala para a revista. A capa é mostrada para milhões de brasileiros.
Na construção de marca, poucas coisas se comparam a você aparecer no Jornal Nacional – e consequentemente nos outros telejornais, que em geral simplesmente o copiam.
Nunca me pareceu que houvesse uma filtragem rigorosa no JN. Jamais vi sinais de uma reflexão desse tipo: se é uma informação tão importante, por que nós não a demos? Estamos no ar todos os dias, temos uma equipe enorme dedicada a apurar coisas importantes. Como, sistematicamente, a melhor notícia sai no final da semana, nas revistas? Estamos fazendo relações públicas ou jornalismo? Há um mito segundo o qual Ali Kamel, editor do JN, é uma cabeça. O produto desmente cabalmente este mito. O JN é barulhento e pedestre. Grita, mas não pensa.
Dentro daquele quadro, o caso Francenildo seria um tento para a Época.
Os elementos de que dispúnhamos na semana em que demos a história na capa eram os seguintes. Francenildo recebera dinheiro, como se podia verificar em sua conta. Não era exatamente edificante a maneira como o extrato fora obtido. Mas o fato principal – vamos entender o conjunto de informações de que dispúnhamos naquele momento – era que uma acusação contra um homem que supostamente representava a estabilidade econômica fora movida a dinheiro.
Fazia sentido, naquela semana e somente nela, darmos a capa.
No mundo perfeito, ninguém publica dossiês em que a privacidade de alguém é invadida, e não estou falando apenas em privacidade financeira.
Mas o mundo não é perfeito.
Tive, na ressaca do episódio, uma demonstração de cavalheirismo que jamais esqueci da parte de João Roberto Marinho, que é uma espécie de editor das Organizações. João, como é chamado informalmente na Globo, comanda as reuniões de terça-feira no Conedit, o Conselho Editorial das Organizações.
Em João, ao longo dos dois anos e meio em que trabalhei na Globo, conheci um homem simples, aplicado, objetivo , prático e confiável. Fala em voz baixa e nunca longamente. Não costuma interromper o interlocutor. Por não ser vaidoso num ponto excessivo sabe suas forças e suas fraquezas. Uma vez, me disse que desistiu de ser jornalista – escrever reportagens, artigos, fazer a manchete do dia etc — quando se deu conta de que não tinha talento jornalístico que o fizesse subir para além da planície. Foi para a administração. Admirei ali a sabedoria, o autoconhecimento.
Nunca vi nada em João, nas reuniões do Conedit ou em nossos despachos fora dela, que pudesse alimentar teses conspiratórias. É um sujeito que quer que sua empresa seja perene, e que batalha honestamente por isso. Você pode discordar de suas ideias – um Estado mínino tatcherista, basicamente – mas não de suas boas intenções. João realmente acredita que ali está receita para um Brasil próspero.
Na reunião do Conedit em que debatemos nosso erro no caso Francenildo, João – como eu dizia – teve um gesto raro e notável. Estavam todos – com razão – incomodados. Antes que os presentes falassem o que tinham achado do papel da Época na história, ele avisou que acompanhara tudo pessoalmente. Não fosse isso, imagino a pancadaria sobre a Época e, consequentemente, sobre mim.
Fiz questão, depois, de mandar a ele um email em que se mesclava agradecimento e reconhecimento.
Estava claro para mim que João, no fragor do episódio, enxergou – antes que os desdobramentos viessem à tona – um bastião da estabilidade econômica, Palocci, sento torpedeado por interesses escusos.
João Roberto se move claramento dentro da “common decency” de George Orwell – o conceito que o grande escritor inglês julgava que deveria nortear uma sociedade civilizada. O mesmo não se pode dizer de Palocci.

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