sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Livros Nem Sempre Ilustram E São Inspiradores


Paulo Nogueira


 Paulo Nogueira é jornalista e está vivendo em Londres. Foi editor assistente da Veja, editor da Veja São 
 Paulo, diretor de redação da Exame, diretor superintendente de uma unidade de negócios da Editora  Abril e diretor editorial da Editora Globo.



Biblioteca Municipal de Manaus: raridade
Um novo trecho do livro “Minha Tribo — o jornalismo e os jornalistas”
MUITAS VEZES O TRABALHO de um editor é feito longe dos olhos do leitor.
Se o editor se defronta com um ambiente envenenado eticamente e corrompido em valores essenciais do jornalismo, ele só mostrará ao leitor o que pode fazer se, antes, enfrentar os problemas internos.
Vivi esta situação ao chegar à Editora Globo, em 2006.
Os três principais homens da administração eram Juan Ocerin, diretor geral, Frederic Kachar, o Fred, seu braço direito, e Jota Erre, diretor de publicidade.
Eram diferentes na aparência, mas parecidos na essência. Todos eles, numa editora em que os jornalistas tinham sido espremidos e os borderôs reduzidos a quase nada, andavam em BMWs e Porsches que contrastavam dramaticamente com a vida espartana que editores e repórteres viviam. Do ponto de vista da simbologia, era uma mensagem péssima.
Os carros importados eram fruto, em grande parte, de bônus conseguidos com práticas comerciais nebulosas, e não com talento gerencial. Logo ao chegar, por exemplo, percebi o tamanho que tinha na hora de fechar as contas, na editora, o governador do Amazonas, Eduardo Braga. Seu estado comprava livros da editora em alta quantidade, bem como telecursos da Fundação Roberto Marinho. Como não existe almoço grátis, a troca se dava num tratamento editorial privilegiado na revista Época. A ponte entre a editora e Braga era feita por Jota Erre. Quando tive uma conversa ríspida com Braga depois de uma reportagem dura da Época sobre seu governo, Jota Erre tomou, imediatamente, o partido de Braga.
Fred numa boca livre da F1, numa foto da Caras
Se você vai ao Google e tecla governo do Amazonas e editora Globo, encontra editais de licitação reveladores. Num deles, que você pode veraqui, há 39 títulos da Globo, vendidos em lotes de 1605 exemplares. É uma barafunda de assuntos. Ali você encontra desde O Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, até o livro de psicologia “Não Há Dois Iguais”, de Judith Rich Harris. Não é ilegal, aparentemente. É apenas imoral, dadas as circunstâncias subterrâneas que cercam este tipo de negócio.
Chama a atenção que, com tanto sucesso dos livros da Globo, o Amazonas tenha o pior índice de bibliotecas públicas do Brasil, segundo o 1.o Censo Nacional de Bibliotecas Municipais, realizado pelo Ministério da Cultura. O Amazonas é o último entre os 27 estados brasileiros. Mesmo assim, as proezas amazonenses estão hospedadas majestosamente na globo.com, no “Portal da Amazônia”.
Juan, Fred e Jota Erre estavam habituados a negociações dessa natureza, da qual derivavam partes de seus carrões. Se Jorge Nóbrega, chefe de Juan, tinha noção do que acontecia, não sei. Se não tinha, era um problema de falta de controle sobre quem tinha que ser controlado. Se tinha, era um problema ainda maior.  Nóbrega fica no Rio. Ninguém administra direito uma operação a 500 km de distância, sobretudo se você é ausente. Em meus primeiros dois anos, Nóbrega jamais foi à editora. Quando Juan foi demitido, ele passou algumas horas em São Paulo para dar uma entrevista ao Meio e Mensagem, na qual disse que as Organizações reconheciam os avanços editoriais feitos em minha gestão.
Logo vi que não faria nada decente se tivesse como colega comercial Jota Erre. Na Editora Abril, onde eu passara 25 anos, a área comercial tinha respeito pelos editores. Na cultura da Abril estava claro que quem fazia a diferença era o conteúdo, e isso é responsabilidade dos jornalistas.
Na Editora Globo, que era uma espécie de terra de ninguém, os editores eram desprezados. Jota Erra achava que sabia editar, por exemplo, bem como Juan e Fred. Assim como o torcedor da geral acha que pode dirigir um time de futebol melhor que ninguém, eles pareciam se julgar editores. Era um fardo, para mim, discutir jornalismo com executivos que misturavam tanto ignorância com presunção.
Ninguém influencia nada a 500 quilômetros.
O impasse com Jota Erre não tardaria. Tivemos uma conversa interna por conta da briga com Braga. Era uma reunião de três pessoas: Ocerin, Jota Erra e eu. De imediato, Jota Erre começou a me atribuir frases que eu não tinha dito. Detesto isso. Vi, jovem, num debate com a chapa do PT na disputa pela presidência do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, papai ser vítima de uma manipulação dessas na sessão de perguntas aos candidatos por José Américo, jornalista que mais tarde viraria político. “Zé Américo”, disse papai depois de um suspiro rápido. “Já pago um alto preço pelas bobagens que digo. Não posso pagar também pelas bobagens que você diz que digo.”
Sempre tive para mim que papai ganhou a eleição — o adversário era Rui Falcão, que depois, como Zé Américo, abandonaria o jornalismo para se dedicar ao PT — naquele momento. Raras vezes vi em minha vida tamanha presença de espírito. Na platéia, ao ouvir Zé Américo manipular as palavras de papai, minha vontade era bater fisicamente nele. A resposta de papai me mostrou que surras morais podem ser mais doídas que as físicas.
Tenho o hábito de olhar para baixo em determinados momentos. Herdei-o de papai. É um instante em que vou buscar sossego interior para refletir sobre alguma coisa. Jota Erre parece ter confundido isso com fraqueza, na conversa entre nós três, Juan, ele e eu depois do episódio da briga que tive com o governador.
“Não sou de baixar os olhos”, ele me disse num tom que me soou triunfal e patético. Ele não tinha causa, naquela discussão, senão seus bônus. Vassalagem interesseira diante de compradores de livros e telecursos não é causa que se sustente.
Aí eu ergui os olhos e fitei Jota Erre.
“Acabou. Eu não falo mais com você.”
Não era uma ameaça. O que eu estava dizendo é que, dali por diante, eu jamais voltaria a falar com o diretor comercial da Editora Globo.
Assim terminou a reunião. Saímos cada um para um lado, Jota Erre e eu. Numa das situações mais bizarras que vivi, Juan correu atrás de mim. Me disse que ia demitir Jota Erre e, ambos de pé, eu a caminho de mexer na edição em curso da Época, ele me pediu um nome. Foi tudo tão rápido que eu não sabia sequer se Jota Erra estava por perto. Juan olhou de soslaio para trás para ver onde ele estava. Pareceu mais tranquilo ao não ver Jota Erre. Segundo Fred me contou, a conversa final entre Juan e Jota Erre foi digna de ambos — insultos trocados aos berros.
Eu tinha um nome.
Meu último cargo na Abril tinha sido executivo, e eu tive sob meu comando um diretor de publicidade jovem e brilhante, Sérgio Amaral. Formado na escola Abril, Serginho, como é conhecido, sabia que sem respeito aos jornalistas você não constrói nada durável. Ele tinha tido um papel relevante em marcos publicitários da Abril, como o Projeto Abril na Copa de 2006. Pela primeira vez, as revistas da Abril atuaram em bloco num pacote editorial e comercial milionário. Fui o idealizador e coordenador do projeto, e vi quanto Serginho tinha sido importante. (Mais tarde, eu levaria o mesmo modelo para a Globo no Projeto Generosidade, que unia as revistas da  editora em torno de reportagens com empreendedores sociais. Mais ainda que no Projeto Abril na Copa, desta vez Serginho seria um parceiro decisivo, com sugestões pertinentes de pautas.)
“Sérgio Amaral”, eu disse a Juan.
“Telefone?”, Juan me perguntou. Passei a ele ali mesmo.
Sérgio Amaral (direita) com Maurizio Mauro (centro) e um executivo de fora num evento da Abril em 2005
A Editora Globo acabaria contratando Serginho — certamente o melhor diretor comercial de sua história oscilante. Serginho sobreviveu um ano à truculência basca e ignara de Juan. Juan queria alguém que, como Jota Erre, vendesse milhões em livros numa cartada obscura em momentos complicados — para fazer jus aos bônus.
Não era esse o perfil de Sérgio Amaral.  No breve período em que esteve na Globo, Serginho Amaral levou o padrão ético da Abril para a editora. Com ele, se inaugurou um curto mas rico período de cooperação limpa e transparente entre as áreas editoriais e comerciais. Espirituoso, Serginho foi autor de uma das frases que melhor definem Juan. Como Maurizio Mauro, que naquele tempo era presidente executivo da Abril, Juan fora da consultora BoozAllen. “Na escola em que o Juan foi aluno o Maurizio era o diretor”, dizia Serginho.
Uma nota saída num jornal de propaganda selou, infelizmente, a sorte de Serginho na Globo. A nota dizia que as Organizações Globo estavam procurando um novo diretor geral. Juan ficou transtornado e ligou para o colunista que publicara a nota em busca de saber quem a passara. “Foi o Serginho, não foi?” O colunista negou. Disse apenas que não era rumor e, sim, fato. A amigos, Orlando Marques, que eu conhecia de longa data dos tempos em que ele fora diretor de publicidade da Veja, dissera naqueles dias que tinha sido, sim, procurado pela direção da Globo para substituir Juan Ocerin.
Juan, que trocara incontáveis diretores de todas as áreas em sua gestão, conseguiu — não sei como — convencer Jorge Nóbrega de que era preciso demitir Sérgio Amaral por causa de uma nota que em sua confusão mental e paranóia reacendida ele atribuía à fonte errada.
Foi um dos momentos em que tive vontade de deixar a editora. Deteve-me uma cláusula que me obrigaria a devolver — integralmente — as luvas que eu tinha recebido para me transferir para a Globo, em 2006. Para elas, não havia o dispositivo espertalhão que fora sorrateiramente colocado pela editora na cláusula de saída que eu tinha exigido para ir para uma empresa de alta rotatividade.
Esse dispositivo — uma frase escrita em jurisdiquês — reduziria a pó minha proteção antidemissão, como eu viria a saber apenas no momento de minha saída por Fred. Num momento digno do turbilhão linguístico e mental de Juan, que fora demitido fazia  pouco tempo, Fred me diria que era assim que os contratos imobiliários eram feitos.
Se é verdade que existe hoje um “Blog do Fred” no site da Globo, como me disse entre gargalhadas uma funcionária da editora, esta é uma pergunta que eu gostaria de dirigir a ele lá: o que tem a ver contrato imobiliário com cláusula de saída?

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