sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

“Nós, Os Cabeças Pensantes Deste País”


Mais um trecho de Minha Tribo — o Jornalismo e os Jornalistas
Uma capa complicada
ELIO GASPARI, em seus tempos de diretor adjunto da Veja nos anos 80,  gostava de contar uma história em voz alta nos corredores da redação, no sétimo andar do prédio da Abril na Marginal do Tietê.
“Quando eu era editor do Informe JB, achava que tinha 300 amigos”, dizia Elio, um comandante de redação simplesmente brilhante, um jornalista que começara como assistente do colunista social Ibrahim Sued e fizera uma escalada notável no jornalismo brasileiro. “Quando deixei a coluna, vi que tinha três.”
Elio estava dando uma lição a jovens jornalistas como eu, que o ouviam naqueles dias com um misto de devoção e medo. Em sua sala, bem ao lado da do diretor José Roberto Guzzo, com quem Elio formou a maior dupla do jornalismo brasileiro, estava pendurado e emoldurado um artigo para ele histórico. Era um texto que escrevera no final da década de 1970 para o Jornal do Brasil, sem assinatura. O artigo despertou a atenção do general Golbery do Couto e Silva, um intelectual fardado. Golbery quis saber quem era o autor. Começaria aí, como no final de Casablanca, uma amizade especial que só se desfaria com a morte de Golbery.
Ouvi aquela história numa vez em que fui despachar uma reportagem com Elio em sua sala simples, como todas as da direção da Veja. Golbery legou a Elio uma coleção de documentos particulares que seriam a base de uma série de aclamados livros sobre a ditadura militar. Nos anos 1980, Elio já falava desses livros. De vez em quando, imprimia um capítulo e passava a alguma pessoa para que lesse e analisasse.
Naqueles dias, uma amizade como a de Elio e Golbery era vista com naturalidade. Hoje, passados 30 anos ao longo dos quais o debate sobre jornalismo trouxe novos consensos, seria inaceitável pelas implicações para a maneira de cobrir um personagem tão importante da República. Não importa o que tragam de informações privilegiadas, amizades com altas autoridades comprometem mais do que beneficiam a cobertura — e o leitor.
Quando Elio falava dos 300 amigos da coluna que tinha no JB, se referia a um tipo comum que ronda as chefias de redação e as salas de proprietários. Você, como colunista ou diretor, e mais ainda como dono, é cercado de pessoas que se dizem amigas. E que depois podem fazer uso dessa alegada amizade para influenciar decisões editoriais.
Elio contava histórias inspiradoras para jovens jornalistas na Veja
Em 2007, decidi dar na Época uma capa com Luciano Huck. Tinham levado seu Rolex, em São Paulo, e houvera uma surpreendente reprovação não ao roubo, mas a Huck por exibir um relógio tão caro. Havia aí uma oportunidade, entendi, de discutir o ódio visceral que o país nutre por gente da “elite” como Huck. A chamada de capa era: “Huck merecia ter sido roubado?”
Huck soube da capa. Ele tinha que aprovar a foto que compráramos de um fotógrafo para que pudéssemos usá-la. Huck não gostou da chamada. Telefonou para se queixar. Foi sedutor. Eu jamais falara com ele, mas ele conversava como se fôssemos velhos conhecidos.
“Paulo, é o Luciano”, disse ele. Demorei a atinar que Luciano era. Eu não conhecia nenhum. Só depois conectei o telefonema com a capa que estava sendo feita. A voz não me dizia nada porque eu jamais tinha visto seu programa.
Ele dizia que seu maior patrimônio era o nome, e que uma chamada descuidada poderia comprometê-lo. Huck, no curso da conversa, fez questão de dizer que era amigo dos irmãos Marinhos, Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto. Eu já era experiente demais para me impressionar com aquilo. Conversamos, ouvi atentamente as ponderações concretas de Huck e chegamos a um acordo para que ele aprovasse a cessão da foto para nós. Estávamos perigosamente perto do limite do prazo de mandar a revista para a gráfica.
“Nós, os cabeças pensantes deste país, temos que nos reunir mais”, Huck disse a mim depois num email. Achei engraçado. Jamais me considerei um cabeça pensante e muito menos a Huck. O que lembrava dele passava pouco de duas mulheres bonitas que deram boas capas quando supervisionei na Abril a Playboy e a Vip — Tiazinha e Feiticeira. Ambas foram reveladas por Huck num programa na Bandeirantes. Sabia, também, que ele era enteado de Mário de Andrade, um bom jornalista da Abril morto jovem de enfarto.
José Roberto Marinho com Vânia: bom ponto sobre os amigos
TERMINADA a edição, mandei um email para o Rio de Janeiro para contar o episódio. Recebi uma resposta que jamais esqueci de José Roberto Marinho. Nos dias seguintes, eu comentaria a essência de mensagem com os jornalistas da Época por entender que havia valor pedagógico  nela. Basicamente, ele dizia que amigos ele tinha muito poucos, embora muita gente gostasse de se apresentar como tal.
José Roberto, o caçula dos Marinhos, dedica-se a assuntos que oscilam entre meio-ambiente e as ações sociais da Fundação Roberto Marinho. É um típico carioca, bronzeado e está quase sempre em mangas de camisa. Aquele email de Zé Roberto, como o chamam, confirmou em mim a impressão de que ele era um homem subestimado, como muitos caçulas.
Jamais o vi, nas reuniões editoriais das terças pela manhã no Rio de Janeiro, dizer algo que não fizesse sentido. Suas ponderações eram sempre lógicas e ditas com brevidade e clareza, num estilo de locução espartano parecido com o de seu irmão João Roberto. Nunca vi nele nenhuma dificuldade em dizer que não conhecia um assunto e fazer perguntas a quem ele achava que soubesse. Parecia leve, solto, ao contrário de algumas pessoas do Conselho Editorial (Conedit) que pareciam carregar o Brasil e o mundo nas costas, como Ali Khamel, o seriíssimo diretor de jornalismo que com seus copiosos artigos e livros de caráter neoconservador pelo visto não convenceu muita gente de que o Brasil explodiria sob Lula. Tinha todos os atributos que fazem de alguém o companheiro ideal para as conversas de uma mesa de bar, em torno de cerveja: bem-humorado, espirituoso, irreverente. Jamais fui a um bar com ele em meus tempos de Globo, e presumo que perdi uma boa chance de me divertir.
O email de Zé Roberto, despretensioso, tinha a mesma carga de sabedoria das falas carismáticas de Elio Gaspari na redação da Veja na década de 1980.
Não foram poucas as vezes, em minha carreira, que um subordinado chegou a mim e disse: “Conheci um grande amigo seu, Paulo.” Ao ouvir o nome, muitas vezes sequer sabia quem era.
Mostrei o email aos editores da Época porque entendi que havia nele um ensinamento para todo jornalista em cargo de mando.

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