segunda-feira, 19 de março de 2012

O Editor Atormentado


Nem sempre um editor tem razões para sorrir


Mais um capítulo de Novo Tempo, romance passado no ambiente jornalístico. Claudio, o editor, recebe do dono do jornal uma ordem: escrever um editorial que defende algo em que ele não acredita. E agora?

Capítulo 22: Aquele em que o editor recebe um pedido indecente

Claudio recebeu um email do patrão. “É fundamental darmos um editorial que condene a agressão de petistas ao Serra. Quero ler antes, por favor.”
Claudio deu um murro em sua mesa que foi ouvido em toda a redação do jornal. Agressão?  Aquilo tinha sido, claramente, uma encenação de Serra. Uma dramatização. As imagens captadas por câmaras mostravam que Serra fora atingido por nada além de uma bolinha de papel na cabeça, numa caminhada na campanha presidencial no Rio de Janeiro. Ele seguira andando normalmente até, minutos depois, atender um telefonema, provavelmente de um assessor. Que, aparentemente, lhe recomendou que valorizasse o episódio, numa tentativa desesperada, e não exatamente honesta, de mudar um quadro eleitoral extremamente desfavorável. As pesquisas apontavam Dilma bem à frente de Serra, numa completa reviravolta sobre o início da campanha. Serra, por algum tempo, parecera já no Palácio do Planalto.
Claudio votara algumas vezes em Serra, mas desistira dele depois de concluir que sua arrogância era desproporcional à competência. Falava e agia como um gênio, mas não fora sequer capaz de mitigar o drama das enchentes de São Paulo depois de ter sido prefeito da cidade e governador do estado. Senão bastasse, ligara para o dono do jornal algumas vezes para reclamar de artigos que o desagradavam. Em suma, um sujeito insuportável. Claudio perguntara uma vez a Fernando Henrique como ele aguentava Serra. FHC riu e desconversou.
Que fazer?
Claudio pensou em pedir demissão, simplesmente. Mas como pagar as contas depois? Poderia ficar satisfeito no primeiro momento, mas provavelmente se arrependeria antes de chegar ao elevador. Nunca ele sentiu tão intensamente a impotência associada ao cargo de editor. O editor publica – nas coisas essenciais — o que o dono deseja, não aquilo em que ele acredita. Alguns editores lidam com isso serenamente. O jornalista Evandro de Andrade, por exemplo, convenceu Roberto Marinho a fazê-lo diretor de redação do Globo depois de ter lhe garantido que era papista. Papista é quem executa o que o papa – o patrão — determina. Claudio, quando começara a carreira, sonhava que o teto era mais que você se tornar um desprezível papista.
Passou por sua cabeça uma cena da vida de Joe Pulitzer, o grande barão da imprensa americana na segunda metade do século XIX. Pulitzer dissera a seu editor, uma ocasião: “Você é pago para fazer o que eu quero. Se você fosse tão bom quanto eu, estaria no meu lugar.”
Naqueles dias, talvez fosse verdade. Pulitzer fora empregado de um jornal e depois comprara um outro – que ele tornaria grande e influente graças a seu enorme talento e constantes inovações. Foi Pulitzer quem inventou as manchetes e quem estabeleceu uma hierarquia no noticiário pela qual vinham primeiro os fatos mais importantes. Até ali, os jornais eram, basicamente, um relato monocórdio dos acontecimentos da semana.
Não era necessário tanto dinheiro assim, naqueles dias, para comprar ou fundar um jornal. Mas agora era diferente. Nenhum dono de jornal poderia dizer a seu editor o que Pulitzer dissera. Nem Rupert Murdoch, o homem que construiu o maior império de mídia da segunda metade do século 20: ele herdou do pai o jornal com o qual começou sua jornada.
Que fazer?
Claudio se ergueu para espairecer. Foi olhar, da janela de sua sala, o trânsito na marginal. Gostava de ver os caminhões passarem, cheios de carga. Quando algum  editor do jornal falava dramaticamente em crise econômica, ele o pegava pelo braço e mostrava os caminhões, como uma evidência de que as coisas estavam afinal andando.
Claudio voltou a sua cadeira e contemplou a tela de seu terminal. Escreveu, num impulso: “O candidato José Serra é um fanfarrão. Ele pensa que é esperto e o povo brasileiro, idiota. Mas atenção: pode ser exatamente o oposto. Onde, na cabeça de Serra, uma única marca daquilo que lhe foi atirado? A candidata Dilma pode não ser a melhor coisa do mundo, mas os brasileiros já puderam ver que ela está acima de Serra mesmo quando ele sobe numa escada de bombeiros.”
Havia no rosto de Claudio um sorriso sinistro ao dissertar, no espaço de 3 000 toques de um editorial, sobre o que pensava de Serra.
As melhores histórias que nós jornalistas temos são as que não podemos publicar. Nossos melhores textos também são os que jamais serão lidos pelos leitores.
Claudio guardou o artigo num arquivo e preparou para enviá-lo ao patrão. Na hora em que ia apertar o botão de envio, parou para pensar uma última vez.
Mando? Não mando?
Decidiu deixar a decisão ao acaso. Se a primeira pessoa que batesse em sua porta fosse um homem, mandaria. Se fosse uma mulher, não. Depois de alguns momentos, bateram.
Claudio levou a mão ao coração. Calmo. Passou por sua cabeça um episódio da Revolução Francesa. O populacho invadiu o castelo em que Luís XV estava. Ele e sua família corriam risco de vida. Ofereceram a ele um copo de bebida, e a sua guarda pessoal – absurdamente impotente naquele instante — queria que ele recusasse por temer que tivessem colocado veneno ali. O rei, tão conhecido por sua indecisão, optou por tomar a bebida oferecida. A alguém que o acusou de ter medo do povo francês, ele retrucou: “Ponha a mão no meu coração e veja se ele está batendo diferente.”
Era uma mulher.
Daniella, a estagiária. Usava um vestido azul que lhe dava um ar de estudante, acentuado ainda mais pelo habitual rabo de cavalo.
“Alguma coisa?”,  Claudio perguntou.
“Trouxe isso pra você”, ela disse. Era um livro comprado num sebo, “A Mulher de Branco”, do inglês Wilke Collins, um dos precursores do romance policial.
Daniella estava fazendo uma imersão em literatura policial antiga para escrever o seu próprio romance de crime. E acabara descobrindo Collins, amigo de Dickens.
“É o melhor livro que já li”, disse ela.
Ele riu. Aos 20 e poucos anos, ainda não lemos nada. Claudio não sabia por que, mas a presença delicada, feminina de Daniella naquele momento mitigou a angústia que vinha sentindo diante da encomenda do dono do jornal.
Quero pegá-la no colo como uma criança ou …
Antes que mergulhasse em mais uma dúvida, despachou Daniella.
“Tenho uma tarefa dura pela frente”, disse ele.
“Posso ajudar em alguma coisa?”, perguntou ela.
“Não.”
Certas coisas um editor não pode delegar. Pode até recusar e pagar o preço, mas não transferir.
Quando Daniella deixou sua sala, Claudio levou automaticamente a mão direita ao coração.
Batia rápido.
E então ele começou a escrever o texto que lhe fora pedido.

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