segunda-feira, 11 de julho de 2011

1.300 km de falcatruas

 

ISTOÉ tem acesso ao último relatório do Tribunal de Contas da União sobre a ferrovia norte-sul, que revela superfaturamento de R$ 69 milhões num trecho de apenas 280 quilômetros

Lúcio Vaz

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IMPUNIDADE
Desde que começou a ser construída há mais de 20 anos,
Norte-Sul apresenta os mesmos problemas de corrupção
Na terça-feira 5, ISTOÉ teve acesso às mais recentes atualizações do Tribunal de Contas da União sobre a lista de obras com irregularidades graves no País. O documento mostra que pelo menos seis trechos da Ferrovia Norte-Sul se mantêm com retenção de pagamentos por conta de sobrepreço apontado por auditorias do órgão de controle. Em várias etapas da obra, foram apontados preços acima dos de mercado, em percentuais próximos dos 20% – o que remete para desvios de centenas de milhões de reais. Os números relacionados no documento do Tribunal de Contas reforçam a imagem da ferrovia como um dos maiores símbolos da corrupção do País. A estrada começou a ser construída há 24 anos e nasceu torta. A primeira concorrência foi fraudada e ficou comprovado que empreiteiras de todo o Brasil fizeram um acordo prévio para escolher qual lote da ferrovia ficaria com quem e a que preço. A investigação do TCU mostra que de lá para cá pouca coisa mudou. Talvez a única alteração tenha sido a rota do dinheiro desviado. Segundo investigações ainda em andamento na Polícia Federal e no Ministério Público, a Norte-Sul seria uma das principais fontes que abastecem atualmente o caixa do PR, partido do ministro Alfredo Nascimento.

O resultado das novas investigações do TCU apontam irregularidades em duas das etapas mais recentes da Norte-Sul. Na primeira delas, entre Anápolis e Uruaçu, em Goiás, orçada em R$ 780 milhões, foi identificado sobrepreço em todos os cinco lotes da construção. Em apenas dois deles, de Ouro Verde a Jaraguá e de Santa Isabel a Uruaçu, com orçamento de R$ 333 milhões, foram apontados valores acima dos de mercado, num total de R$ 69 milhões. Para evitar os prejuízos decorrentes da paralisação dos serviços, o Tribunal preferiu adotar uma medida mais branda: a retenção parcial dos repasses. Isso significa que ficaram retidos nos cofres públicos recursos equivalentes aos percentuais de sobrepreço – 19,8% no primeiro lote e 20,5% no segundo. Se as empresas conseguirem provar que os preços estão adequados ao mercado, o dinheiro represado será liberado mais tarde.
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ENFIM
Juquinha, o presidente da Valec afastado por Dilma, já havia sido alvo de denúncias
de irregularidades na Norte Sul, como a feita por ISTOÉ em abril deste ano
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O TCU também já havia identificado irregularidades nos cinco lotes da etapa Anápolis-Uruaçu ao longo de 280 quilômetros. As grandes empreiteiras que venceram as licitações estavam repassando parte dos contratos para pequenas empresas, sem prévia autorização da Valec, a estatal responsável pela construção de ferrovias no País. Até mesmo o Tribunal desconhecia o nome dessas empresas subcontratadas. Várias delas deixaram de pagar seus funcionários e geraram prejuízo para a estatal, que respondeu pelas ações trabalhistas. Na segunda etapa com irregularidades, entre Palmas e Uruaçu, também foram apontados preços acima dos de mercado. O sinal de alerta nas obras da Norte-Sul foi dado no final de 2008. Auditorias do próprio TCU e inquéritos da Polícia Federal apontavam indícios concretos de superfaturamento, fraude em licitações e tráfico de influência. Os valores excessivos somavam R$ 516 milhões em 16 lotes entre Aguiarnópolis (TO) e Palmas. Houve clara restrição à competitividade das licitações, com limitação da participação da mesma empresa em mais de dois lotes. “Ao que tudo indica, as obras foram loteadas entre um restrito grupo de empresas”, resumiu o relatório do TCU. O resultado é que a concorrência apresentou deságios irrisórios pelas empreiteiras. A média dos descontos ofertados ficou em 0,9%, um índice impensável em ambiente de real competição, segundo os auditores do Tribunal. O desvio de recursos públicos acontecia da forma mais inesperada. Uma delas consistia em fazer um espaçamento entre dormentes acima dos padrões técnicos. A distância entre eles deveria ser de 60 centímetros, mas chegava a 74 centímetros. A diferença pode parecer insignificante, mas o custo de cada um ficava em torno de R$ 500, e eram 1.666 dormentes por quilômetro. Em alguns trechos, havia pouco mais de 1,5 mil unidades por quilômetro, mas o pagamento era feito como se o espaçamento estivesse correto.

O chumbo mais pesado viria de um órgão do próprio governo, a Polícia Federal. Escutas telefônicas autorizadas pela Justiça mostraram estreitas ligações entre o diretor de Engenharia da Valec, Ulisses Assad, e o empresário Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney.

Empreiteiros ligados ao grupo liderado por Fernando foram beneficiados por subcontratações na obra. A empresa Lupama, de Gianfranco Perasso e Flávio Barbosa Lima, recebeu uma subempreitada de R$ 46 milhões da Constran, que havia vencido a licitação para o lote de 105 quilômetros entre Santa Isabel e Uruaçu – aquele mesmo que teve sobrepreço apontado pelo TCU anos mais tarde. Numa das conversas gravadas, Gianfranco relatava como faria para tocar a obra. “Vamos pensar assim, a princípio 100% do contrato. Obviamente, para isso aí acontecer, nós temos que estar dentro dessa subempreitada.”

O grande responsável pela gestão desses empreendimentos é o ex-diretor executivo da Valec Engenharia, José Francisco das Neves, o Juquinha. Há três meses, reportagem de ISTOÉ revelou as operações irregulares comandadas por Juquinha. No sábado 2, ele foi afastado do cargo em meio às denúncias de corrupção que envolvem o Ministério dos Transportes. Conforme antecipou a reportagem de ISTOÉ, laudo do Instituto Nacional de Criminalística, da Polícia Federal, constatou superfaturamento de R$ 71,7 milhões num trecho de 105 quilômetros da Ferrovia Norte-Sul, em território goiano. Os peritos também questionaram a lisura da licitação e suspeitam de “conluio” das empresas, exatamente como o ocorrido em 1987, quando a ferrovia começou a ser construída. O superfaturamento no trecho que separa as cidades de Santa Isabel e Uruaçu, em Goiás, não seria exceção, mas uma regra ao longo de toda a obra. “Sete lotes da Ferrovia Norte-Sul foram licitados com base no mesmo edital analisado neste laudo e, portanto, é provável que o sobrepreço apurado no lote 04 se repita nos demais”, concluíram os peritos. Com a demissão de Juquinha e com a presidente de olho no Ministério dos Transportes, talvez a Norte-Sul ganhe novos contornos.
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