segunda-feira, 11 de julho de 2011

O perfil das brasileiras aliciadas pelo tráfico internacional de seres humanos

Presas fáceis

Vítimas de falsas promessas, brasileiras são aliciadas pelo tráfico internacional de pessoas e colocam o País como o maior exportador de mulheres das Américas. Sem saber, elas embarcam numa viagem de exploração sexual, violência e escravidão
Gisele Brito, Kátia Mello, Raquel Maldonado e Talita Boros
redacao@folhauniversal.com.br

Elas são jovens, negras, largaram a escola cedo, moram em regiões precárias e são vítimas de violência doméstica. Vulneráveis, essas mulheres são o alvo principal do tráfico de pessoas. E por se encontrarem em um contexto de fragilidade são as presas perfeitas para exploração sexual promovida por aliciadores, que convencem as vítimas com falsas promessas de uma vida melhor e cheia de sonhos no exterior. Todos os anos, cerca de 60 mil brasileiros são vítimas do tráfico internacional de pessoas, segundo o ministério da Justiça. E os números de casos não dão sinais de diminuição. Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), a cruel prática do tráfico de pessoas só perde para o de drogas como tipo de crime organizado mais lucrativo do mundo. Ao todo, o mercado movimenta cerca de 2,5 milhões de pessoas e mais de US$ 32 bilhões (R$ 50 bilhões) por ano, dos quais 80% são da exploração sexual de mulheres.

Nesse cenário, o Brasil é o maior exportador de mulheres das Américas, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). As brasileiras e as nascidas nos países do leste europeu estão entre as mais traficadas no comércio mundial para serem exploradas sexualmente. “O tráfico de pessoas é uma forma moderna de escravidão. Hoje se escravizam pessoas por dívida. Os traficantes mantêm o poder sobre elas, que devem as passagens, a estadia e a alimentação, fazendo com que se submetam ao que eles querem. Elas são mantidas sem condição de sair, porque não têm como pagar o que devem”, resume Ricardo Lins, coordenador nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria Nacional de Justiça, em entrevista à “Agência Brasil”, no ano passado.

Exatamente o que aconteceu com Kika Cerpa, que foi convencida pelo namorado a arranjar um emprego em Nova York, nos Estados Unidos. Aos 20 anos, quando chegou à cidade, a venezuelana descobriu que na verdade ele havia planejado com um primo vendê-la como prostituta a aliciadores. “Quando cheguei a Nova York, pegaram meu passaporte e meu dinheiro. A primeira noite foi a pior. Tive que dormir com 19 homens”, contou durante um encontro da UNODC na sede da ONU, na cidade norte-americana. “Neste período (1992-1995) conheci outras mulheres vítimas de tráfico sexual. Fiz uma amiga, a Annie, que morreu nas mãos de um cliente porque não queria estar com ele”, lamentou. Hoje Kika trabalha há quase 10 anos como advogada em defesa de vítimas de tráfico sexual.

Ainda com base nos dados da UNODC, em 66% dos casos de tráfico de pessoas, as vítimas são mulheres. Em segundo lugar ficam meninas (13%), homens (12%) e meninos (9%). De acordo com a OIT, os principais destinos estão na Europa: Portugal, Espanha, Itália e França. Estatísticas policiais divulgadas pelo Ministério do Interior da Espanha indicam que cerca de oito em cada dez prostitutas detidas no país em 2009 são brasileiras, ou seja, 86% do total de casos.

Em agosto do ano passado, a polícia espanhola prendeu 14 pessoas – em Palma de Mallorca, Madri, Barcelona, Alicante e León – que aliciavam mulheres e homens brasileiros. Ao desembarcar na Espanha eles eram obrigados a se prostituir para pagar dívidas, que chegavam a mais de 4 mil euros (R$ 9 mil).

Meses depois, em outubro, a polícia local de Lugo, também na Espanha, prendeu três policiais acusados de envolvimento com uma rede de prostituição forçada de brasileiras. Ao todo, mais de 50 pessoas foram detidas na ação. De acordo com a declaração de brasileiras, vindas de diversos estados, elas estavam em cárcere privado, sofriam ameaças de agressão física e recebiam falsas promessas de regularização de seus documentos na Espanha.

Mário Ângelo Silva, professor do departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador de uma pesquisa sobre o tema, destaca que as mulheres ficam desamparadas fora do Brasil. “Ao viajar para o exterior elas ficam confinadas, sem direito a entrar em contato com suas famílias e são obrigadas a ingerir drogas e bebidas alcoólicas”, conta (leia sobre a degradação física das aliciadas ).

As promessas são muitas: empregos de garçonete, manicure, empregada doméstica, babá, entre outras atividades regulares. “Muitas delas são totalmente enganadas. Outras até sabem que estão indo como prostitutas, mas não têm ideia das condições que as esperam”, completa Silva.

Os aliciadores, em muitos casos, são próximos às vítimas como familiares, amigos ou colegas. Segundo Flávia Antunes, oficial de Cooperação Sul-Sul do UNODC, não existe um perfil fixo desses criminosos, mas os homens ainda são maioria. “Agora começamos a perceber um aumento no número de mulheres aliciadoras, pela confiança, pela relação mais próxima com as vítimas”, afirma. Muitas vezes, são mulheres mais velhas e que também já foram vítimas do tráfico.

Em maio deste ano, a Justiça Federal de Jales (SP) condenou dois brasileiros a mais de 5 anos de prisão pelos crimes de tráfico internacional de pessoas e exploração da prostituição. Eles foram denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF) por terem financiado as viagens de cinco brasileiras para trabalharem como prostitutas na Itália e terem ficado com o lucro dos programas. Em 2010, na cidade, já haviam sido denunciadas quatro pessoas que promoviam a saída de mulheres da região para exercer a prostituição em Portugal entre os anos 2000 e 2002.

O Brasil instituiu em 2008 o I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, através do Ministério da Justiça, e estabeleceu metas para solucionar o problema no País. “O Brasil avançou muito com a construção de núcleos de enfrentamento ao tráfico nos estados. São Paulo é onde o programa está mais avançado. O Plano lançado pelo Governo foi muito ambicioso”, afirma Flávia, da UNODC. Depois do plano, o número de aliciamentos em grandes centros urbanos diminuiu, segundo levantamento da organização europeia Centre for Migration Policy Development (ICMPD). Entretanto, o recrutamento de mulheres em áreas periféricas e pobres do País cresceu. A pesquisa mostra que os principais estados de origem das vítimas são Paraná, Goiás, Minas Gerais, Pará, Piauí e Pernambuco.

Quando retornam ao Brasil, as vítimas do tráfico podem recorrer aos Centros de Referência da Mulher, do Governo Federal. Existem 167 unidades em todo o País, nas quais elas encontram assistência psicológica, social e jurídica. “Precisamos dar condições de vida, trabalho e igualdade de gênero para essas mulheres. Enquanto não tiverem oportunidades no Brasil, elas continuarão se arriscando por melhores condições de vida fora do País”, conclui Silva.

Dois meses de escravidão

Em 1998, as cariocas Luana e Marcela saíram do Brasil para trabalhar na Espanha, contratadas como dançarinas. Chegando ao outro lado do Atlântico, descobriram que tinham sido enganadas e captadas para fins de exploração sexual. A aliciadora era uma amiga de infância que já havia passado 9 meses na Europa e apelava para a questão financeira para convencê-las a viajar. “Você vindo para cá, a gente vai ficar rica, vai poder comprar a nossa casa própria, vai poder comprar carro, você não vai mais precisar trabalhar em casa de família, ficar ralando”, relembra Luana, em depoimento à organização não governamental (ONG) Projeto Trama, divulgado no site da entidade. Depois de 2 meses se prostituindo, conseguiram pegar os passaportes e fugir do apartamento em que viviam em cárcere privado.

Alerta nos aeroportos

O Governo Federal está capacitando consulados e realizando campanhas de prevenção ao tráfico de mulheres nos aeroportos e cidades. “A gente quer priorizar zonas rurais e municípios de fronteira. O trânsito de mulheres também é grande nessas áreas”, diz Clarissa Corrêa, coordenadora de Acesso à Justiça e Combate à Violência da Secretaria de Políticas para as Mulheres. “Precisamos dar atenção para as diferentes formas que o tráfico aparece no Brasil. É uma atividade muito dinâmica e em cada local tem uma característica.”



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