quinta-feira, 24 de novembro de 2011

COMUNICAÇÃO SOCIAL NO BRASIL: O DIREITO E O AVESSO




Fábio Konder Comparato


“– Bem sei, mas a lei?

– Ora, a lei… o que é a lei, se o Senhor major quiser?…

O major sorriu-se com cândida modéstia.”

MANOEL ANTONIO DE ALMEIDA, Memórias de um Sargento de Milícias.


No conto O Espelho, de Machado de Assis, o narrador assevera a seus ouvintes espantados que cada um de nós possui duas almas. Uma exterior, que exibimos aos outros, e com a qual nos julgamos a nós mesmos de fora para dentro. Outra interior, raramente exposta aos olhares externos, que nos permite julgar o mundo e a nós mesmos, de dentro para fora.

Importa reconhecer que essa duplicidade, no exato sentido de algo dobrado ou dissimulado, tal como a metáfora do conto machadiano, encontra-se tanto em nosso caráter, quanto em nossa organização político-econômica.

É inegável que o caráter brasileiro contém um elemento de dissimulação constante nas relações sociais. Nossa afabilidade de maneiras, tão elogiada pelos estrangeiros, dissimula com frequência sentimentos de desinteresse e desprezo.

Já em matéria de organização político-econômica, sempre tivemos, desde a Independência, um duplo esquema institucional. Há, de um lado, o direito oficial, que é a nossa alma exterior exibida ao mundo. Mas há também, no foro interior de nossas fronteiras, um direito oculto, que acaba sempre por prevalecer sobre o direito oficial, quando este se choca com os interesses dos poderosos.

Creio que o exemplo mais conspícuo dessa duplicidade institucional ocorre nos meios de comunicação de massa.

A maioria das normas sobre a matéria, constantes da Constituição de 1988, é certamente de bom nível. Acontece, porém, que quase todas elas ainda carecem de regulamentação legislativa, vinte e três anos após a promulgação da Carta Constitucional. São armas descarregadas.

Como se isso não bastasse, em decisão de abril de 2009 o Supremo Tribunal Federal julgou que a lei de imprensa de 1967 havia sido tacitamente revogada com a entrada em vigor da Constituição de 1988. Ora, nessa lei de imprensa, como em todas as que a precederam, regulamentava-se o exercício do direito de resposta, inscrito no art. 5º, inciso V da Constituição. Em conseqüência, esse direito fundamental tornou-se singularmente enfraquecido.

Como bem lembrou Lacordaire na França no século XIX, numa época em que a burguesia montante já impunha a política de desregulamentação legislativa de todas as atividades privadas, “entre o rico e o pobre, entre o forte e o fraco, é a lei que liberta e é a liberdade que oprime”. De que serve, afinal, uma Constituição, cujas normas não podem ser aplicadas pela ausência de leis regulamentares? Ela existe, segundo a clássica expressão francesa, como trompe l’oeil, mera ilusão pictórica da realidade.

Inconformado com essa negligência indesculpável do órgão do Poder Legislativo – negligência que, após mais de duas décadas da entrada em vigor da Constituição, configura uma autêntica recusa de legislar – procurei duas entidades, que são partes constitucionalmente legítimas para propor ações dessa espécie: o PSOL e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Comunicação e Publicidade. Elas aceitaram ingressar como demandantes perante o Supremo Tribunal Federal, onde tais ações foram registradas como ADO nº 9 e ADO nº 10.
Qual não foi, porém, meu desencanto quando, intimados a se pronunciar nesses processos, tanto a Câmara dos Deputados, quanto o Senado Federal, tiveram a audácia de declarar que não havia omissão legislativa alguma nessa matéria, pois tudo transcorria como previsto no figurino constitucional!

Acontece que, para cumular o absurdo, a duplicidade no campo da comunicação social não se reduz apenas ao apontado descompasso entre a Constituição e as leis.

Se considerarmos em particular o estatuto da imprensa, do rádio e da televisão, encontraremos o mesmo defeito: o direito oficial é afastado na prática, deixando o espaço livre para a vigência de um direito não declarado, protetor dos poderosos.

A Constituição proíbe ao Poder Público censurar as matérias divulgadas pelos meios de comunicação de massa. Mas os controladores das empresas que os exploram, estes, são livres de não divulgar ou de deformar os fatos que contrariem seus interesses de classe.

Como não cessa de repetir Mino Carta, este é o único país em que os donos da grande imprensa, do rádio ou da televisão fazem questão de se dizer colegas dos jornalistas seus empregados, embora jamais abram mão de seu estatuto de cidadãos superiores ao comum dos mortais.
Cito, a propósito, apenas um exemplo. Em fevereiro de 2009, o jornal Folha de S.Paulo afirmou em editorial que o regime empresarial-militar, que havia assassinado centenas de opositores políticos e torturado milhares de presos, entre 1964 e 1985, havia sido uma “ditabranda”. Enviei, então, ao jornal uma carta de protesto, salientando a responsabilidade do diretor de redação por aprovar essa opinião ofensiva à dignidade dos que haviam sido torturados, e dos familiares dos mortos e desaparecidos. O jornal publicou minha carta, acrescida de uma nota do diretor de redação, na qual eu era gentilmente qualificado de “cínico e mentiroso”. Revoltado, ingressei com uma ação judicial de danos morais, quando tinha todo o direito de apresentar queixa-crime de injúria. Pois bem, minha ação foi julgada improcedente, em primeira e em segunda instâncias. Imagine-se agora o que teria acontecido se as posições fossem invertidas, ou seja, se eu tivesse tido o destrambelho de insultar publicamente o diretor de redação daquele jornal, chamando-o de cínico e mentiroso!
A lição do episódio é óbvia: a Constituição reza que todos são iguais perante a lei; no mundo dos fatos, porém, há sempre alguns mais iguais do que os outros.

Vejamos, agora, nesse quadro institucional dúplice, o funcionamento dos órgãos de rádio e televisão.

Dispõe o art. 21, inciso XII, alínea a, que “compete à União explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens”.

No quadro constitucional brasileiro, por conseguinte, a exploração dessas atividades constitui um serviço público; isto é, no sentido original e técnico da expressão, um serviço prestado ao povo. E a razão disso é óbvia: as transmissões de radiodifusão sonora ou de sons e imagens são feitas através de um espaço público, isto é, de um espaço pertencente ao povo. Escusa lembrar que, como todo bem público, tal espaço não pode ser objeto de apropriação privada.

Da disposição constitucional que dá à radiodifusão sonora e da difusão de sons e imagens a natureza de serviço público decorrem dois princípios fundamentais.

Em primeiro lugar, o Estado tem o dever indeclinável de prestá-lo; e toda concessão ou permissão para que particulares exerçam esse serviço é mera delegação do Poder Público. Assim dispôs, aliás, a Lei nº 8.987, de 1995, que regulamentou o art. 175 da Constituição Federal para as concessões de serviços públicos em geral.

Em segundo lugar, na prestação de um serviço público, a realização do bem comum do povo não pode subordinar-se às conveniências ou aos interesses próprios daqueles que os exercem, quer se trate de particulares, quer da própria organização estatal (em razão de economia orçamentária, por exemplo).

Ora, neste país, desde o início do regime empresarial-militar em 1964, ou seja, antes mesmo da difusão mundial do neoliberalismo capitalista nas duas últimas décadas do século passado, instaurou-se o regime da privatização dos serviços de rádio e televisão. A presidência da República escolheu um certo número de apaniguados, aos quais outorgou, sem licitação, concessões de rádio e televisão. Todo o setor passou, assim, a ser controlado por um oligopólio empresarial, que atua não segundo as exigências do bem comum, mas buscando, conjuntamente, a realização de lucros e o exercício do poder econômico, tanto no mercado quanto junto aos Poderes Públicos.
Ainda hoje, todas as renovações de concessão de rádio e televisão são feitas sem licitação. Quem ganha a primeira concessão torna-se “dono” do correspondente espaço público.

A aparente justificação para esse abuso é a norma mal intencionada do art. 223, § 2º da Constituição, segundo a qual “a não-renovação da concessão ou permissão dependerá de aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal”. Basta, porém, um minuto de reflexão para perceber que esse dispositivo não tem o efeito de suprimir a exigência de ordem pública, firmada no art. 175, segundo a qual todas as concessões ou permissões de serviço público serão realizadas mediante licitação.

Outra nefasta consequência dessa privatização dos serviços públicos de rádio e televisão entre nós, é que as autoridades públicas, notadamente o Congresso Nacional, decidiram fechar os olhos à difundida prática negocial de arrendamento das concessões de rádio e televisão, como se elas pudessem ser objeto de transações mercantis. Ora, tais arrendamentos, muitas vezes, dada a sua ilimitada extensão, configuram autênticas subconcessões de serviço público, realizadas com o consentimento tácito do Poder concedente.
Será ainda preciso repetir que os concessionários ou permissionários de serviço público atuam em nome e por conta do Estado, e não podem, portanto, nessa qualidade, buscar a realização de lucros, preterindo o serviço ao povo? O mais chocante, na verdade, é que o Ministério Público permanece omisso diante dessa afrontosa violação de normas constitucionais imperativas.

Sem dúvida, o direito brasileiro (Lei nº 8.987, de 13/02/1995, art. 26) admite é a subconcessão de serviço público, mas desde que prevista no contrato de concessão e expressamente autorizada pelo poder concedente. A transferência da concessão sem prévia anuência do poder concedente implica a caducidade da concessão (mesma lei, art. 27).

Mesmo em tais condições, uma grande autoridade na matéria, o Professor Celso Antonio Bandeira de Mello, enxerga nesse permissivo legal da subconcessão de serviço público uma flagrante inconstitucionalidade, pelo fato de burlar a exigência de licitação administrativa (Constituição Federal, art. 175) e desrespeitar com isso o princípio da isonomia.

Para se ter uma idéia da ampla mercantilização do serviço público de televisão entre nós, considerem-se os seguintes dados de arrendamento de concessões, somente no Estado de São Paulo:


BANDEIRANTES: 24 horas e 35 minutos por semana (tempo estimado)

2a a 6a feira
5h45 – 6h45 (Religioso I)
20h55 – 21h20 (Show da Fé)
2h35 (Religioso II)
Sábado e domingo
5h45 – 7h (Religioso III)
4h (Religioso IV)


REDE TV!: 30 horas e 25 minutos por semana (tempo estimado)
Domingo
6h – 8h – Programa Ultrafarma
8h – 10h – Igreja Mundial do Poder de Deus
10h – 11h – Ultrafarma Médicos de Corpos e Alma
16h45 – 17h – Programa Parceria5
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
2a e 3ª feiras
12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus
14h – 15h – Programa Parceria 5
17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa
1h55 – 3h – Programa Nestlé
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
4a feira
12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus
14h – 15h – Programa Parceria 5
17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
5a e 6ª feiras
12h – 14h – Igreja Mundial do Poder de Deus
17h10 – 18h10 – Igreja da Graça – Nosso Programa
3h – Igreja da Graça no Seu Lar
Sábado
7h15 – 7h45 – Igreja Mundial do Poder de Deus
7h45 – 8h – Tempo de Avivamento
8h – 8h15 – Apeoesp – São Paulo
8h15 – 8h45 – Igreja Presbiteriana Verdade e Vida
8h45 – 10h30 – Vitória em Cristo
10h30 – 11h – Igreja Pentecostal
11h – 11h15 – Vitória em Cristo 2
12h – 12h30 – Assembléia de Deus do Brasileiro
12h30 – 13h30 – Programa Ultrafama
2h – 2h30 – Programa Igreja Bola de Neve
3h – Igreja da Graça no Seu Lar

TV GAZETA: 37 horas e 5 minutos por semana
2a a 6ª feiras
6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus
20h – 22h – Igreja Universal do Reino de Deus
1h – 2h – Polishop
Sábado
6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus
20h – 22h – Igreja Universal do Reino de Deus
23h – 2h – Polishop
Domingo
6h – 8h – Igreja Universal do Reino de Deus
8h – 8h30 – Encontro com Cristo
14h – 20h – Polishop
0h – 2h – Polishop

A lição a se tirar dessa triste realidade é bem clara: os meios de comunicação social, neste país, permanecem alheios aos princípios e regras constitucionais.
Para a correção desse insuportável desvio, é indispensável e urgente tomar três providências básicas.
Em primeiro lugar, impõe-se, na renovação das concessões ou permissões do serviço de radiodifusão sonora, ou de sons e imagens, cumprir o dispositivo de ordem pública do art. 175 da Constituição Federal, que exige a licitação pública.
Em segundo lugar, é preciso pôr cobro à escandalosa prática de arrendamento de concessões de rádio e televisão.
Em terceiro lugar, como foi argüido nas ações de inconstitucionalidade por omissão, acima mencionadas, é urgente fazer com que o Congresso Nacional rompa a sua prolongada mora em cumprir o dever constitucional de dar efetividade aos vários dispositivos da Constituição Federal carentes de regulamentação legislativa, a saber:
1)O art. 5º, inciso V, sobre o direito de resposta;
2)O art. 220, § 3º, inciso II, quanto aos “meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente;
3)O art. 220, § 5º, que proíbe sejam os meios de comunicação social, direta ou indiretamente, objeto de monopólio ou oligopólio;
4)O art. 221 submete a produção e programação das emissoras de rádio e televisão aos princípios de: “I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”.
É o mínimo que se espera nessa matéria dos nossos Poderes Públicos, como demonstração de respeito à dignidade do povo brasileiro.
Brasília, 22 de novembro de 2011.

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