Prestes a completer 82 anos, mais de 50 dedicados à política, José Sarney foi acometido por uma irrupção de saudosismo. Levou à sua página na web um texto sobre os “velhos Carnavais” da São Luís de sua juventude.
Havia “maisena e tapioca” nos Carnavais desse Sarney jovial, eis o que descobrem os que lêem o texto. Havia também “balões cheios de urina e água colorida, para espocar manchando vestidos.” Até “lança-perfume” havia. “Não era para cheirar como droga”, o Sarney octagenário esclarece.
Então para quê? “Para perfumar as moças ou tentar atingir os olhos de luxúria dos que piscavam para nossas namoradas.” Huummm… Sem graça, dirão os jovens dos dias que correm, assediados pelo ecstasy.
Mas nem só do perfume de moças namoradeiras eram feitos os Carnavais de Sarney. Pendurada na janela, “toda São Luís” aplaudia os aromas que exalavam de “caminhões de carroceria aberta” –o “carro da Lolita”, o “da Maroca”, o da “Honorina”.
Era o desfile das “mulheres dos nossos bordéis”, Sarney relembra. A julgar pelo relato do senador, as prostitutas de antanho eram mais comportadas que as mulheres que hoje passam por ilibadas.
As rameiras de São Luís escondiam nesgas de carne sob “saias redondas”. Agora, as fêmeas-foliãs são super-explícitas. Sobre carros mais alegóricos, mostram sem pejo todas as curvas e reentrâncias.
Filtradas pelas lentes da tevê, protagonizam uma espécie de bastilha do feminismo. São servidas pelos cinegrafistas em pedaços -ora o seio, ora a nádega, ora o púbis. Dia virá em que as feministas queimarão cuícas e pandeiros em praça pública!
Mas você deve estar se perguntando: por que diabos Sarney decidiu entregar-se à introspecção que o levou a remoer reminiscências carnavalescas. Ele próprio foi sacudido pela dúvida. Inquiriu seus botões sem obter resposta conclusiva. “É saudosismo? Não. É velhice? Talvez.”
Seja como for, há utilidade na volta de Sarney ao passado. O momento é propício. Em nenhuma outra época do calendário o Brasil se revela tanto quanto no Carnaval. Podendo envergar qualquer tipo de disfarce, o país costuma vestir-se de si mesmo. E nada é mais parecido com o Brasil real do que o Brasil da fantasia.
Aliás, o melhor da máscara de Carnaval é justamente a possibilidade que oferece aos usuários de exibir suas verdades ocultas. Assim, do mesmo modo que um homem veste-se de mulher sem que lhe estranhem os gestos efeminados, o país também pode aproveitar o Carnaval para desfilar suas hipocrisias.
Para começar, uma constatação: há mais semelhanças do que diferenças entre os Carnavais do Sarney da velha capital maranhense e a folia que rodeia o Sarney da moderna Brasília, Capital que a política transmuda em fantasia.
“A cidade era pobre e não tinha dinheiro para grandes fantasias”, conta Sarney. Hoje, São Luís é quase igual. Prosperou pouco. E o pouco que se desenvolveu é aproveitado por muito poucos.
O Brasil progrediu um pouco mais. Mas ainda não perdeu o jeitão de Maranhão hipertrofiado. O que não o impede de fantasiar-se de democracia social. Um Carnaval após o outro, renova-se a ilusão de que o samba iguala ricos e pobres.
Na São Luís de outrora, escreve Sarney, “cada Carnaval tinha sua música predileta”. A canção “vinha do Rio, onde ainda não havia o desfile feérico das Escolas de Samba.” Eram “marchinhas sensuais”. Citou “mamãe eu quero mamá”. Grafou o verbo ‘mamar’ assim mesmo, sem o ‘R’ final e com acento no ‘A’. É como se desejasse realçar a agudeza com que o desejo de sorver era cultivado.
Composta pelo maestro Vicente de Paiva, ‘Mamãe eu Quero’ estourou na voz de Jararaca, no Carnaval de 1937. Nessa época, Sarney era um menino de sete anos. Muitos carnavais sucederam desde então. As prostitutas sumiram dos caminhões de São Luís. As Judas do feminismo ganharam no Rio a passarela da Marquês de Sapucaí.
O Brasil foi apresentado ao trio elétrico, a Bahia e Pernambuco inventaram o Carnaval perpétuo, Sarney virou Sarney… E a chupeta de ‘Mamãe eu Quero’, transmitida de geração a geração, continua nos lábios dos brasileiros.
Na letra sacana da marchinha –“Eu olho as pequenas, mas daquele jeito / E tenho pena de não ser criança de peito!”— a chupeta servia para atenuar pulsões específicas e localizadas. Com o passar do tempo, virou metáfora de todas as mamada$.
Uma das características da folia da São Luís foi acomodada no rabo de uma frase, quase como um etcétera que Sarney deixou escapar inadvertidamente: “…sem esquecer os blocos de sujos.” Ah, quanta saudade! Bons tempos aqueles em que a lama era feita de barro e os sujos desfilavam apenas nos blocos carnavalescos.
Havia nos carnavais pretéritos de Sarney dois tipos de bailes de máscaras –o baile “de primeira”, para a gente grã-fina. E o baile “de segunda”, para o resto da gente. Nos clubes refinados, as mulheres só entravam depois de levantar as máscaras.
Por quê? “Para que não entrassem as mulheres da zona, as prostitutas”, que tinham que “brincar e bailar” noutros salões. “Coisas daquele tempo”, anota Sarney. “E tudo hipocrisia. Era um libera geral, graças a Deus.”
Por mal dos pecados, também no baile fiscal de Brasília vigora a hipocrisia, graças ao Tinhoso. Com uma diferença. Fantasiada de si mesma, a prostituição política é admitida nos salões federais sem o inconveniente de ter de levantar a mascara.
No Carnaval de 1966, Sarney já governava o Maranhão. Elegera-se no ano anterior, com o apoio do general Castelo Branco. Abre parentêse. Gláuber Rocha produziu um memorável documentário. Chama-se Maranhão 66. Sobrepõe ao discurso de posse de Sarney imagens de maranhenses miseráveis. Pode ser visto aqui. Fecha parêntese.
Pois bem. Sarney governava sob um slogam ainda hoje irrealizado: “Maranhão Novo”. Passado o Carnaval daquele ano de 66, o bispo Felipe Conduru enviou-lhe um cartão. Dizia: “Senhor governador, não fale em Maranhão Novo. Isto só ocorrerá depois do senhor acabar com a devassidão do Carnaval.”
Hoje, Sarney ri por escrito: “Onde está Dom Felipe? No Céu, no Pavilhão das Onze Mil Virgens, velando para que não fujam no Carnaval.” O bispo há de manter um olho nas virgens e outro em Sarney. Também deve estar gargalhando.
Da nuvem onde se encontra, Dom Felipe repara a esperteza com que Sarney leva à avenida as alegorias de suas memórias. Ele evolui da década de 30 para a de 60 sem recordar o golpe que houve de permeio.
No Carnaval de 1964 o Brasil pulou no ritmo de ‘Cabeleira do Zezé’. Mais do que outro clássico carnavalesco, essa marchinha nasceu como uma premonição. Dois meses depois de entoar o verso duplicado –“será que ele é, será que ele é”—, o país foi apresentado ao golpe militar.
A canção lançava dupla suspeita sobre Zezé. Cabeludo e transviado, ele seria homossexual e representaria a rebeldia da juventude da época. O que fazer? “Corta o cabelo dele, corta o cabelo dele…” Haja premonição! O regime apoiado por Sarney foi além do cabelo. Cortou barba, bigode e um hediondo etc.
Para sorte de Sarney e diversão do bispo, todo ano tem Carnaval. Num, o bloco da farda. Noutro, o cordão de Tancredo Neves. Num, a fantasia de Lula. Noutro, a alegoria feminina de Dilma. Viva o Carnaval. Os de ontem, o de hoje e os que ainda estão por vir.
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