sexta-feira, 18 de maio de 2012

Menos segredo, mais democracia



Depois de 30 anos, a Comissão da Verdade é instalada na mesma 

semana da entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação. As 

iniciativas representam o amadurecimento da democracia no País

Izabelle Torres e Octávio Costa
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MOMENTO HISTÓRICO 
A instalação da Comissão da Verdade no Palácio do Planalto reuniu a presidenta 
Dilma Rousseff e os quatro antecessores, Fernando Collor, José Sarney,
Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva
Às 11h46 da quarta-feira 16, o locutor oficial do Palácio do Planalto anunciou: “Está instalada a Comissão da Verdade.” A plateia que ocupava o Salão Nobre, repleta de familiares de vítimas da ditadura militar, aplaudiu com entusiasmo, certa de que estava vivendo um momento histórico. De volta à plenitude democrática, o País finalmente poderá passar a limpo os episódios tristes e cinzentos dos anos de chumbo. Emocionada com a criação do órgão que vai apurar os horrores da repressão, a presidenta Dilma Rousseff, ladeada por quatro ex-presidentes da República, fez questão de ressaltar que no mesmo dia entrava em vigor a Lei de Acesso à Informação, que obriga órgãos públicos a fornecer dados requeridos por qualquer cidadão. A nova lei e a Comissão da Verdade não nasceram juntas por mera coincidência. São frutos, como lembrou a própria Dilma, de um longo processo da democracia, de quase três décadas. “Não posso deixar de declarar meu orgulho por coincidir com o meu governo o amadurecimento da nossa trajetória democrática. Por meio dela, o Estado brasileiro se abre, mais amplamente, ao exame, à fiscalização e ao escrutínio da sociedade”, afirmou a presidenta.
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Não faltou emoção durante a solenidade de posse dos sete integrantes da Comissão. Dilma fez um discurso bastante cuidadoso, referindo-se à participação de seus antecessores na consolidação do Estado de Direito, lembrando até dos falecidos Itamar Franco e Tancredo Neves. Sem mencionar expressamente a Lei da Anistia, enalteceu quem lutou contra a ditadura, mas disse que reconhece e valoriza os pactos políticos que levaram à redemocratização. A ex-guerrilheira da VAR-Palmares, hoje no comando do País, chorou ao lembrar a dor das famílias que nunca puderam enterrar seus mortos. “Merecem a verdade factual aqueles que perderam amigos e parentes e continuam sofrendo como se eles morressem de novo e sempre a cada dia”, afirmou a presidenta, com a voz embargada. Foi interrompida por aplausos e completou: “É como se disséssemos que, se existem filhos sem pais, se existem pais sem túmulo e se existem túmulos sem corpos, nunca, nunca mesmo, pode existir uma história sem voz.” Novamente a plateia irrompeu em aplausos. A exceção foram os comandantes da Aeronáutica, do Exército e da Marinha que ficaram em silêncio e estáticos.

Com seu discurso, a presidenta deixou claro qual será o foco da Comissão da Verdade: jogar luz sobre o destino dos desaparecidos, para que as famílias possam reverenciar seus mortos. Sua mensagem foi discutida na primeira reunião da comissão e enterrou de uma vez por todas as discussões sobre a possibilidade de investigar também excessos cometidos por quem lutou contra a ditadura. No fim da tarde da quarta-feira 16, os sete integrantes já tinham em mente algumas das principais metas e começaram a pensar numa agenda de prioridades com base no recado de Dilma, que lhes foi transmitido discretamente pela ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann. “Não existem relatos do Estado procurando por militares desaparecidos ou vitimados pelos ativistas. Existem, sim, vítimas e parentes de brasileiros em busca de informações sobre seus familiares. E esse deve ser nosso foco”, opinou a psicanalista Maria Rita Kehl, uma das integrantes mais engajadas. A Comissão sabe que terá de lidar com a expectativa de centenas de familiares em busca de respostas e com o desejo anunciado de que o relatório sirva de instrumento para pedidos de reparações judiciais no Brasil e nas Cortes internacionais. “Acho que é cedo para comentar sobre o direito das famílias, porque ainda não temos subsídios e fatos apurados. Mas é um direito legítimo”, diz o ex-procurador Cláudio Fonteles.
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“A PALAVRA VERDADE É ALGO TÃO 
SURPREENDENTEMENTE FORTE QUE NÃO 
ABRIGA NEM O RESSENTIMENTO,
NEM O ÓDIO, NEM TAMPOUCO O PERDÃO”
Dilma Rousseff, presidenta
Diante de um País ansioso por informações até hoje mantidas em absoluto sigilo, existe o risco de excessiva exposição individual dos sete membros da comissão. Ao definir o rodízio de coordenadores durante os próximos dois anos, o grupo mostrou preocupação com a convivência durante os trabalhos. “Perguntaram a um dos integrantes da comissão da verdade na África do Sul o que tinha sido mais difícil e ele disse que foi conviver com os outros 16 membros. É com isso que temos de tomar cuidado”, disse o advogado e escritor pernambucano José Paulo Cavalcanti. Para ele, o ideal é falar pouco e apurar bem os fatos. “Nós temos que saber que nosso trabalho precisa dar certo”, completa, destacando a responsabilidade de grupo. Por enquanto, está definido que nos primeiros meses o grupo será coordenado pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça, Gilson Dipp.

O compromisso da Comissão em apresentar resultados concretos animou os familiares de vítimas da ditadura, que há décadas sofrem sem informação sobre seus parentes mortos pela repressão, principalmente por conta do sigilo de documentos. Com a Lei de Acesso à Informação, esses entraves aos direitos dos cidadãos deixarão de existir. “Nunca mais os dados relativos a violações de direitos humanos poderão ser reservados, secretos ou ultrassecretos”, garantiu Dilma. A nova legislação obriga os órgãos do governo federal e empresas de economia mista a ter um Serviço de Atendimento ao Cidadão (SIC) em suas páginas de internet e uma sala para receber pedidos de informação de brasileiros sem acesso a computadores. Informações sobre contratos e licitações dos órgãos públicos devem ser fornecidas em linguagem simples e a negativa de divulgá-las implicará sanções contra os funcionários.
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FARDA SILENTE
Enquanto a plateia aplaudia o discurso da presidenta Dilma Rousseff, 
os comandantes da Aeronáutica, do Exército e da Marinha permaneciam em silêncio
A regra já começou a surtir efeitos. Na tarde da quarta-feira 16, o Banco Central anunciou que vai dar total transparência às reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom), com a divulgação dos votos de cada diretor. É do Copom que saem as decisões sobre as taxas de juros. Até hoje, a posição dos diretores era mantida em segredo. Os pedidos de informações e a pressão pelo cumprimento da nova lei também mudaram a rotina do Legislativo e do Judiciário. Ambos os Poderes ainda estão analisando como vão se adequar ao novo contexto. A expectativa é de que em um mês eles divulguem as regras com os prazos para recursos contra pedidos de informações não atendidos. “Todas as medidas estão sendo tomadas para o cumprimento da nova lei. Há disposição dos órgãos, mas alguns, como o Ministério da Justiça, sofrem com alguns problemas operacionais devido à quantidade de instituições subordinadas. Mas a lei vem para ficar e creio que em breve estaremos operando com tranquilidade”, disse à ISTOÉ o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. 

De acordo com os órgãos de controle, apenas 30% das instituições estão realmente preparadas para fornecer informações com facilidade aos cidadãos. O grande gargalo está nos Estados. Em alguns deles sequer os documentos foram digitalizados e as páginas de internet operam de forma precária. Nesses casos, somente a pressão da sociedade poderá forçar o Poder Público a cumprir a lei. Apesar da dificuldade operacional dos órgãos e da lentidão dos Estados de disponibilizar as informações, especialistas e autoridades comemoram os avanços. “Este é o início de uma revolução no relacionamento das instituições com os cidadãos. Os problemas serão resolvidos um a um”, avalia Jorge Hage, ministro-chefe da Controladoria-Geral da União. “Direitos começam a ser respeitados no Brasil. Tanto o de conhecer os segredos dos tempos de ditadura quanto o de ter acesso a informações públicas”, diz o cientista político da Universidade de Brasília (UnB), David Fleischer. Está, portanto, inaugurada uma nova fase da democracia no Brasil: mais transparente e aberta aos cidadãos.  
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VELHA AMIGA
Rosa Maria defendeu Dilma durante a ditadura.
Agora, integrará a Comissão da Verdade

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