por Conceição Lemes
Desde o final de 2011, quando entrou em cena a Medida Provisória 557, as feministas têm sido atacadas, desqualificadas (pessoal, técnica e politicamente), ridicularizadas. Motivo: terem se posicionado com firmeza contra a MP 557, hoje rechaçada quase unanimemente. A MP 557, que institui o cadastro nacional de gestantes, visa à redução da mortalidade materna.
Só que os detratores desconhecem que, nos últimos 30 anos, a questão da morte materna tem sido pautada e enfrentada no Brasil justa e basicamente pelos movimentos de mulheres. Por ano, cerca de 1.600 morrem por causa da gravidez – antes, durante ou nos primeiros 42 dias após o parto.
Em 2010, esse grave problema de saúde pública no país acabou participando da campanha presidencial de 2010. Eleita a presidenta Dilma Rousseff, ele se tornou uma das prioridades do seu governo.
“Ótimo que a presidenta tenha reconhecido que a mortalidade materna é uma demanda das mulheres”, avalia Jurema Werneck. “Só que, a partir daí, ela tem falhado, errado terrivelmente.”
“A MP 557 foi uma decisão errada da presidenta”, observa Jurema. “Além de não resolver a questão da morte materna e atropelar arrogante e explicitamente os sujeitos sociais e princípios fundamentais, essa escolha do governo trouxe para o centro do debate da saúde da mulher, de forma fortalecida, o que de pior a sociedade brasileira já produziu que são os conservadores xiitas, da extrema-direita cristã.”
Tanto que, na última reunião do Conselho Nacional de Saúde (CNS), em 25 de janeiro, apenas dois segmentos se mostraram favoráveis à MP 557: o próprio governo e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
“Eu não sei se o governo federal está baixando a cabeça para os setores ultraconservadores, se está derrotado, satisfeito e confortável nessa aliança, mas que está chocando o ovo da serpente, está”, adverte Jurema Werneck. “O governo Dilma não está vendo o ovo de serpente que está deixando chocar.”
Jurema Werneck tem autoridade e representatividade para dizer tudo isso. É médica, vice-presidente do Conselho Nacional de Saúde, militante do movimento negro, membro da Articulação Nacional de Mulheres Negras e coordenadora da ONG Criola. Segue a nossa entrevista, na íntegra.
Viomundo – Priorização da morte materna é uma demanda antiga dos movimentos de mulheres em todo o Brasil. O que achou de a presidenta Dilma a ter elegido como uma de suas prioridades?
Jurema Werneck — Foi uma coisa boa, a intenção era ótima. Ponto. A partir daí, ela tem falhado, errado terrivelmente.
Viomundo – Onde?
Jurema Werneck – Ela começou o primeiro ano do seu mandato com o decreto da Rede Cegonha. Terminou-o com a edição da Medida Provisória 551, que institui o cadastro nacional das gestantes. O fato de essas duas medidas terem a chancela da presidenta significa que a decisão em relação à saúde da mulher subiu de hierarquia governamental. Isso não é uma coisa ruim. Ruim foi o encaminhamento completamente equivocado que a presidenta deu a isso. Ruim foi a presidenta ter respondido a isso de forma antidemocrática. Um erro crasso.
Viomundo – Explique melhor.
Jurema Werneck – Priorizar a saúde é uma pauta importante e nossas leis já estabelecem canais de diálogo com a sociedade em relação às formas para se compreender melhor o que precisa ser priorizado na saúde, o que está errado, o que precisa ser melhorado.
Por exemplo, os conselhos de saúde, a Conferência Nacional de Saúde. No Brasil, há mais conselheiros de saúde do que vereadores. Por lei, todo município tem de ter conselho de saúde, e os conselhos são proporcionalmente maiores do que as câmaras.
Logo, o governo deveria ter interlocutores e, principalmente, interlocutoras para onde quer que se dirigisse.
E, no caso de medidas de caráter nacional, poderia recorrer até ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), que, por lei, tem a prerrogativa de deliberar o que vai acontecer na política nacional de saúde sob qualquer aspecto. Afora os 44 integrantes do CNS, há uma comissão inter-setorial de saúde da mulher que tem uma série de especialistas, de ativistas para discutir as questões da área. Isso sem falar na multidão de militantes dos movimentos de mulheres por esse Brasil afora.
Ou seja, a presidenta tinha gente à beça, completamente disponível e habilitada para fazer o debate e propor soluções técnicas e políticas adequadas às necessidades que todas as mulheres vivem, mas ignorou todo mundo.
Por alguma razão que eu não entendo, a presidenta Dilma abriu mão dessa potência democrática e dessaexpertise à disposição dela e tomou uma decisão de gabinete em relação à Rede Cegonha e à MP 557, atropelando ainda a nós, mulheres. Achou que tinha mais razão do que todo mundo e que, sozinha, com a sua equipe, compreenderia muito mais as questões envolvidas do que esse conjunto imenso de gente.
Viomundo – Esse encaminhamento é decisão da presidenta ou tem a ver também com a postura do ministro Alexandre Padilha que ignorou totalmente os movimentos de mulheres?
Jurema Werneck – O decreto da Rede Cegonha e a Medida Provisória têm a assinatura da presidenta e da equipe dela. O Padilha é seu ministro, é seu assessor responsável para a área de saúde.
Todos nós do Conselho Nacional de Saúde e dos movimentos de mulheres estávamos à disposição da presidenta Dilma não só porque grande parte votou nela, mas porque saúde é prioridade de 99% da população brasileira.
Mas a presidenta tomou a decisão sozinha com a equipe dela. E no final não foi nem a melhor solução, porque tanto a Rede Cegonha quanto a MP foram — e são! — bastante rechaçadas por nós.
No caso específico da morte materna, não há mulher contrária a que se coloque o que de melhor tem de conhecimento e capacitação, para a solução desse gravíssimo problema de saúde pública.
Viomundo – Seria falta de assessoria na área de saúde da mulher?
Jurema Werneck — A assessoria da presidenta tem qualidades técnicas suficientes para entender que o está por trás da morte materna é a péssima assistência ao parto, ao puerpério e ao abortamento.
Nós temos dito o tempo todo o que está nos dados do Ministério da Saúde: a primeira causa de morte materna no Brasil é a eclampsia. A segunda, a pré-eclampsia; entre as principais causas está o abortamento.
O que isso quer dizer? A eclampsia e a pré-eclampsia são agravos que podem prevenidos. E o abortamento pode ser melhor atendido.
Na verdade, a principal causa de morte materna no Brasil é a negligência, a desconsideração institucional, tendo o racismo entre os principais elementos.
Não é só o racismo. Mas o racismo fundamentalmente. Porque as principais mortas nessa história são as mulheres negras, as mulheres índias, as mulheres das periferias.
Então, a gente poderia ter agregado muito. Se os assessores da presidenta Dilma ainda não entenderam o que os próprios números do sistema de informação do SUS revelam, a gente poderia ter explicado melhor. Assim como a gente poderia ter explicado a questão da negligência, do despreparo dos profissionais, da incapacidade do SUS atender da forma como a lei manda, cumprindo assim os direitos das pessoas. Afinal, a gente vive isso todo dia e a nossa luta nesses anos todos tem sido para explicar isso melhor.
Viomundo – Mas faltou assessoria ao ministro Padilha ou o ministro Padilha não teria assessorado direito a presidenta Dilma?
Jurema Werneck — Não faltaria assessoria se não houvesse uma arrogância que eu não sei se é particular desse ministro. Ele não é único empossado em janeiro de 2011 que acha que tem todas as respostas. Isso não significa que não tenha qualidades técnicas e políticas.
Viomundo – Teriam pensado que estavam inventando a roda?
Jurema Werneck – Por aí. Acham que a história acabou, o movimento de mulheres não é mais necessário, os sujeitos sociais e políticos não precisam mais negociar os seus direitos, as suas necessidades, porque eles, ministro & Cia, já são os porta-vozes, sabem tudo.
Viomundo – O que acha de a MP 557 ter trazido para o centro do debate da saúde da mulher os católicos fundamentalistas?
Jurema Werneck – Esse é o outro lado da moeda das decisões tomadas. Além de não resolver a questão da morte materna, atropelar arrogante e explicitamente os sujeitos sociais e princípios fundamentais, as escolhas feitas pelo governo com a Rede Cegonha e agora com a MP 557, trouxeram para o centro do debate da saúde da mulher, para a arena democrática, de forma fortalecida, o que de pior a sociedade brasileira já produziu que são os conservadores xiitas, da extrema-direita cristã.
Essas pessoas saíram fortalecidas nesse cenário, cantando vitória em correntes de e-mails. Assim como os higienistas em São Paulo e nas principais capitais, que saem matando a população de rua, e a PM que ataca desde o show com Rita Lee até os estudantes nas universidades. É tudo ao mesmo tempo.
Viomundo – De forma sincronizada…
Jurema Werneck — Sincronizada e com as piores opções possíveis. O Brasil está ficando fascista. Essa gente que se dizia do campo democrático e popular não pode colocar no centro do debate, como sujeitos sociais e políticos fortalecidos, esses conservadores xiitas. Não se pode fazer reverências aos delírios deles de controle completo de mulheres, gays, lésbicas, população de rua, negros, pobres, como o governo está fazendo.
Viomundo – O governo estaria baixando a cabeça para os setores mais conservadores?
Jurema Werneck — Eu não sei se o governo federal está baixando a cabeça, se está derrotado, satisfeito e confortável nessa aliança, mas que está chocando o ovo da serpente, está. O governo Dilma não vendo o ovo de serpente que está deixando chocar.
Viomundo – A MP 557 faz parte disso?
Jurema Werneck — A MP é um passo adiante da Rede Cegonha. Ela foi feita, nas palavras do governo, para operacionalizar alguns aspectos da Rede Cegonha. Só que a MP não operacionaliza coisa nenhuma. Não responde nem tecnicamente nem politicamente ao que a morte materna significa para o Brasil – um problema de repercussão internacional. E, por outro lado, cai no que de pior tem, que é essa gente ultraconservadora.
Aqueles que nós fortalecemos para operacionalizar o estado democrático, para realizar o desejo da gente de um o Brasil melhor, estão entregando o ouro para o bandido.
Viomundo — E a agora?
Jurema Werneck — A gente que faz política tem de denunciar. Cada vez que eles cometerem equívocos gigantes, como o decreto da Rede Cegonha e a MP 557, só temos uma alternativa: lutar.
Viomundo — Que caminhos vislumbra tanto para a Rede Cegonha quanto para a MP 557?
Jurema Werneck — No Conselho Nacional de Saúde e nos movimentos sociais, a gente está tentando, primeiro, por um freio de arrumação nesse negócio.
Decreto é decreto, já é lei. Nós fomos atropeladas, mas agora é lei.
A MP 557 é lei enquanto estiver em vigor e não for votada. O que a gente está tentando, agora, é recolocar os princípios que foram atropelados no debate. Nós queremos com duras e intensas críticas mostrar o quanto o governo tem sido arrogante na tomada dessas decisões e mostrar também o quanto eles têm se equivocado tecnicamente.
É preciso também que reconheçam que as soluções técnicas deles não vão levar a lugar nenhum em relação à morte materna. Afinal, nem a Rede Cegonha nem a MP 557 pegam a morte materna na sua origem, na sua causa principal. Eles estão achando que a bolsa-pré-natal de R$ 50 – R$ 25 reais no início da gravidez e R$ 25 no final – vai garantir o acesso. Pois estão redondamente enganados. Os R$ 50 não garantem o acesso de quase mulher nenhuma.
Viomundo – Por quê?
Jurema Werneck – É claro que para uma ou outra mulher os R$ 50 ajudam, pois elas moram longe da maternidade, onde não tem transporte. Mas isso não é solução para quem vive numa cidade em que não tem táxi, não tem maternidade.
A bolsa-pré-natal também não é uma solução para o direito à saúde dessa mulher. A lei diz que o SUS tem de ir onde a mulher está.
A bolsa-pré-natal também não é uma solução para o próprio SUS que já tinha indicado outras formas para se chegar até a casa das pessoas, como as estratégias do Programa Saúde da Família e dos agentes de saúde, a do “Melhor em Casa”, por exemplo.
Por que no caso da gravidez tem que pagar o táxi? A rigor essas mulheres moram onde não tem táxi, não tem rua, não tem maternidade, não tem nada.
E a gestante que mora no meio da floresta, o que vai fazer? Mesmo que alugue um barco com os R$ 50, a ribeirinha com gravidez de risco em trabalho de parto vai levar muitas horas para chegar ao distrito mais próximo e lá não vai encontrar maternidade com vaga, UTI neonatal, equipe preparada para dar conta daquele risco. Esses R$ 50 não dão também para ela pagar um avião e voar até o palácio do planalto para dizer para a presidenta que ela tomou uma decisão errada.
Viomundo – No dia 25 de janeiro, a MP 557 foi debatida no Conselho Nacional de Saúde. Quem falou a favor, quem falou contra?
Jurema Werneck – Se pronunciaram favoravelmente à MP do jeito que estava, incluindo o nascituro, apenas dois segmentos: o governo federal e a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
O governo federal pelas razões óbvias. Foi ele quem a fez. E a CNBB pela longa trajetória de tomar decisão sem levar em conta os sujeitos.
Eu acho muito bom que CNBB tome a palavra e diga o que pensa na esfera pública. Isso é uma conquista da democracia. É muito bom que a Igreja Católica venha a público e se manifeste, porque ela sempre articulou nos palácios e nos gabinetes. E geralmente à revelia de todos nós, homens e mulheres, que não éramos da igreja, que não éramos próximos a eles, que não éramos os fidalgos.
Agora, dentro do princípio democrático, é bom só até aí. Desde quando a CNBB é a melhor interlocução para dizer o que as mulheres querem e necessitam? É um organismo de uma hierarquia, onde só homem opina, onde só homem manda. Homem que, a rigor não passa pela experiência de uma gestação, de um parto, de um nascimento, de um atendimento de violência sexista, racista que o SUS pode oferecer, que está por trás da alta taxa de mortalidade materna no Brasil.
A igreja solidária precisava ser um pouco mais solidária e ouvir as nossas histórias pessoais não como castigos do pecado original, mas como pessoas reais, sofrendo de causas injustas, neste século 21.
Viomundo – A professora Eleonora Menecucci assume nesta sexta feira o cargo de ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Acha que haverá mudança no Rede Cegonha e na MP 557?
Jurema Werneck — A nova ministra é muito bem-vinda. Não apenas por sua longa trajetória de lutas pela democracia e justiça social, mas também por ser profunda conhecedora dos temas relativos à saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos. Para ela, nada do que nós, mulheres, estamos apontando em relação à MP 557 é desconhecido. Ao contrário, ela fez parte das lutas que determinaram as conquistas até aqui. Espero que. em nome do compromisso que ela tem com a luta e os movimentos sociais, ela possa recolocar o debate sobre a prevenção da morte materna no patamar que ela requer e merece. Espero que a ministra Léo e também a ministra Luiza Bairros, da Promoção da Igualdade Racial, possam dialogar com a presidenta e ajudar na qualificação das ações e na tomada de decisões com maior propriedade. E, claro, que juntas reconheçam que a luta das mulheres trouxe todas nós para a arena de diálogo e não apenas elas.
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