terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

O ovo da serpente


Colunistas

Roberto Amaral

Cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004.
Todo estudante de primeiro semestre de qualquer curso  de Comunicação Social conhece muito bem as muitas teorias sobre o papel dos meios de comunicação de massa como correia de transmissão dos interesses da classe dominante – e não do Estado, acrescento eu, porque é possível identificar fraturas entre os interesses de um e de outro, na medida em que o aparelho estatal abre fendas para a penetração de apelos das chamadas classes subalternas, no exercício de seu papel de acomodação dos interesses gerais em benefício da preservação dos interesses soberanos, os do capitalismo, cada vez mais internacional (diz-se hoje globalizado) e cada vez menos nacional. Por isso mesmo a “globalização” é também um projeto político que intenta minar as soberanias.  Daí, é exemplar o comportamento da imprensa brasileira, a distonia entre os interesses nacionais e aqueles expressos pelos grandes meios, cujos interesses se vinculam materialmente aos interesses da metrópole hegemônica.

Com muitos anos de atraso penso finalmente estar respondendo a pergunta que me fez brilhante ministro do governo Lula:
– Amaral, por que a imprensa brasileira é mais reacionária do que a média dos empresários?
A pergunta se justificava porque (estávamos em  2003)  já era unânime a oposição midiática num quadro no qual  o empresariado brasileiro era o grande beneficiário das nova política externa e nova política econômica de Lula, irmãs siamesas. Ora, a emergência brasileira (e daqueles países que mais tarde formariam os BRICs) não interessava às grandes potências, nem do ponto-de-vista da disputa de mercado, nem  do ponto-de-vista estratégico.
A história de hoje explica a antecipação da imprensa brasileira, atenta, de coração e alma, ao pulsar dos interesses metropolitanos.
O sucesso de Lula, no embate, é conhecido. Sua construção se deu quando o presidente, quebrando a barricada mídiatica, estabeleceu o diálogo direto com as grandes massas, que conquistou, em defesa de seu mandato e de seu governo, portanto, da democracia. À grande imprensa que, apesar do rádio e da televisão, não conseguira chegar, politicamente, aos humilhados e ofendidos de sempre, restou o espaço vazio de seu campo tradicional de atuação ideológica, a classe-média, insegura e reacionária por definição. Descobriu-se, então – ensinou-nos a popularidade do presidente –, que a imprensa já não era aquela formadora de opinião de que falavam os tratados de sociologia. E revelou-se também  bastante relativo  o decantado poder da classe média de influir na formação da consciência nacional. O “mundo” brasileiro comportava algo para além de Ipanema e da avenida Paulista. Falavam os rincões libertados do coronelismo, sensíveis aos apelos dos reajustes do salário mínimo e dos ganhos do Bolsa-família. É verdade que continuavam e continuam assistindo às novelas daGlobo, mas sem ouvidos para a pregação do Jornal da Noite. O que se segue é história recente e conhecida.
Ocorre, porém – há sempre outro lado –, que os ganhos dessa história limitaram a capacidade de avaliação da esquerda brasileira, que, vitoriosa, passou a menosprezar o papel da chamada mídia, deixando de fazer contraposição ao seu  discurso ideológico. O que estou pretendendo dizer é que os jornalões, as rádios e as televisões estão ganhando o discurso ideológico que se dissemina junto à crescente classe média,  irradiando valores conservadores. Ante a falência material e ideológica dos partidos de oposição, a velha imprensa primeiro dita-lhes a pauta, para, no segundo momento, assumir a pregação fundamentalista que nem o DEM nem o PPS têm mais forças para sustentar. Esse discurso reatualiza o moralismo udenista, arcaico de natureza, e assim, uma vez mais,  nossos problemas estruturais, como ao tempo do lacerdismo e do janismo de campanha eleitoral,  são reduzidos ao combate à corrupção. Fracassada a varredura janista e a guerra aos marajásdo primeiro Fernando, cria-se a fantasia da  ‘faxina’ com o que a direita esperava exorcizar o lulismo.
Não se fale mais em desenvolvimento do país, em defesa da empresa nacional, muito  menos em distribuição de renda. Basta fechar a Esplanada e com ela o Congresso Nacional, a ‘fonte de todos os males’. Mas não nos dizem o que colocar em seu lugar. Os militares? Os empresários? Os ‘técnicos’? Ah!, sim, os técnicos,  eis outro dogma do catecismo reacionário: se o mal é dos políticos, basta substituí-los por ‘técnicos’ – como o Sr. Maílson da Nóbrega, hoje “consultor de empresas”, que nos legou uma inflação de cerca de 2.000% ao ano, quando o ministro da Fazenda que a debelou foi o político Fernando Henrique Cardoso, em ação política capitaneada pelo sempre injustiçado presidente Itamar Franco, outro político de carreira.
No fundo, no perverso fundo, está o projeto essencial da direita em todo o mundo: excluir da política a própria política. Esse, o “valor” que a direita impressa está passando sem que a esquerda, embalada pelo sucesso político-eleitoral, lhe dê combate, na ilusão de que o não explícito inexiste, sem olhos para ver o ovo da serpente ou o carruncho que devora em silêncio  as entranhas do madeirame.
A visão contemporânea da esquerda eleitoralmente vitoriosa, convencida pelo pragmatismo de que o objetivo eleitoral deve comandar as questões políticas, a saber, a vitória da tática sobre a estratégica, a vitória do imediato tangível  sobre o projeto final, a renúncia ao debate ideológico e principalmente às suas consequências, têm facilitado, até pelo seu silêncio, a propagação dos valores anti-políticos e antidemocráticos da direita, que avança, sorrateira, como erva daninha, a sugar nossa própria seiva. Quando disputamos o poder pelo poder outra coisa não estamos fazendo senão reproduzindo a tática do adversário histórico. Ora, isso é um doce suicídio: a  direita pode disputar o poder pelo poder, pode alimentar projetos pessoais que se sobreponham aos partidos, pode negar a política, pode apegar-se ao imobilismo, e ainda assim estará ideológica e politicamente coerente com seus interesses, simplesmente porque o poder já lhe pertence.

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